* Por Rafael Gallo *

O conto “Lembrança das lições” inicia-se com a cena de um garoto na escola, enquanto a professora dá aula sobre a escravidão no Brasil. O retrato sentimental do aluno, uma criança negra, diante da exposição da história de seus ancestrais – e que se descortina também como parte de sua história, primeiramente nos sinais do deboche de outros alunos (“É você, macaco, você é escravo – cochicha-me um aluno branco”) e do autoritarismo segregativo da professora, a qual “parece ter um martelo na língua e um pé-de-cabra abrindo-lhe um sarcasmo de canto de boca, de onde me faz caretas um pequeno diabo cariado” – é um dos melhores e mais representativos momentos da coletânea Contos escolhidos, do escritor Cuti, que a editora Malê acaba de lançar. É nessa cena que o protagonista-narrador diz:

A cada palavra de seu discurso pressinto uma nova avalanche de insultos contra mim e contra um ‘eu’ mais amplo, que abraça meus iguais na escola e estende-se pelas ruas, envolvendo muitas pessoas, sobretudo meus pais.

Esse “‘eu’ mais amplo”, o encontro das águas dos conflitos individuais e daqueles de ordem coletiva – com seus movimentos que se afetam e se tencionam reciprocamente – é um dos focos abordados, especialmente no tocante a questões raciais, nas narrativas de Luiz Silva, o Cuti. Doutor em literatura brasileira pela Unicamp e um dos criadores e mantenedores da série iniciada em 1978 Cadernos negros, talvez a mais importante coleção literária de publicações independentes de autores negros do País, Cuti apresenta aqui abordagens ora bem-humoradas (tal qual em Incidente na raiz), ora mais carregadas nas tintas da violência e da dramaticidade (um exemplo é o conto Dupla culpa) sobre temas como o racismo, a criminalidade, a pobreza e as muitas lacunas sociais que cercam as personagens, quase sempre representativas de uma história que é a sua subjetividade, mas também sua identidade coletiva, e as dinâmicas entre um universo e outro.

O livro atinge seus melhores momentos justamente quando se volta ao itinerário afetivo de alguns personagens, quando eles se tornam portadores involuntários, por assim dizer, de uma carga que, mais do que social ou política, é constituinte de seus destinos como um todo. Um dos contos de destaque, por exemplo, é “Conluio das perdas”, no qual um homem perde primeiro a esposa para uma doença fatal (não é um fato “sociológico”) e depois o filho, por conta de uma prisão injusta (baseada em racismo) e o trauma que o faz partir para longe. O título aponta a relação entre essas perdas, que se não se pareiam contingencialmente em suas causas, fazem-no em suas consequências particulares. É um dos grandes acertos do livro, junto com o já citado “Lembrança das lições” ou “Que horas são?”, conto que flerta com o realismo fantástico ao mostrar um protagonista negro, em cuja pele começam a surgir manchas brancas, na forma de relógios de ponteiro.

A estrutura de algumas das narrativas, no entanto, sofre por falta daquilo que Cortázar designava como concentração – ao comparar o conto a uma fotografia e o romance a um longa-metragem. Quando Cuti tenta, em um espaço de brevidade, dar conta de elementos demais da biografia de um personagem, acaba gerando dispersões, tal qual acontece em “Luz em horizonte fechado”, ou em alguns outros contos, que parecem se pretender “longas-metragens”, na acepção cortaziana.

Mas o livro é feito mais de acertos do que de falhas e, além dos destaques já citados, traz belas passagens como aquela em que, após ter sido vítima de racismo, um policial mistura o próprio sangue ao do agressor, no conto “Ponto riscado no espelho”. Violência e ternura, humor e dramaticidade, humanidade e crítica social, subjetividade e coletividade se misturam também nesse gesto, e é nesses momentos em que o trabalho de Cuti mais pode comover seus leitores, fazendo com que os “‘eus’ mais amplos” de quem lê se comuniquem melhor com os que emanam do texto. Como acontece em toda boa literatura.

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contos-escolhidos

Contos escolhidos, de Cuti Silva (editora Malê, 128 págs.)

Rafael Gallo é paulista, autor de Rebentar (Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2016, entre outros livros

 

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