Gerações traumatizadas

perec

Por Jacques Fux *

Além dos milhões de mortos que a Shoah produziu, ainda temos que levar em consideração outros milhões de pessoas que foram afetadas diretamente pelos terríveis eventos. Não podemos deixar de lembrar as milhares de crianças que perderam seus pais, as milhares de crianças que viveram a sombra desses eventos por serem filhos de sobreviventes totalmente traumatizados, e as milhares de crianças que infelizmente descobriram ser filhos de perpetradores nazistas. Essa é uma realidade dura e que deve ser estudada.
O escritor francês Georges Perec (1936-1982), que vem sendo cada vez mais estudado no Brasil, viveu esses eventos traumáticos. Perec, quando tinha em torno de cinco anos, separou-se da sua família e nunca mais teve notícias de seus pais. Sua mãe, possivelmente, foi morta em Auschwitz e seu pai morreu no front de guerra. Esse evento singular e traumático pode ser encontrado em toda sua obra ficcional e memorialística. O escritor, durante quase toda sua vida, lutou e tentou reconstruir suas memórias e suas lembranças de infância, quando ainda vivia próximo aos seus pais.

Ao escrever um de seus principais livros, W ou a memória da infância, Perec mistura ficção, memória, infância e autobiografia e o resultado é um livro que permite analisar profundamente as implicações da Shoah em sua narrativa e em sua vida. Nesse livro, o escritor conta as suas memórias de infância encadeadas pelo nazismo e por um país chamado W que seria uma alusão à estrutura alemã durante a Shoah.

W ou memória da infância tem a seguinte epígrafe de Raymond Queneau: “essa bruma insensata em que se agitam sombras, como eu poderia clareá-la”. Assim, Perec quer clarear e reviver suas sombras e memórias de infância. Perec escreve para se percorrer e tentar entender os acontecimentos mais importantes de sua vida.
O divertido escritor Perec gostava de ludibriar e brincar constantemente com seus leitores. Propunha jogos, criava enigmas, brincava com a língua e com a linguagem sempre esgotando todas as possibilidades literárias.

Em Je suis né, Perec dá uma dica do que (e como) está realmente buscando: “A questão não é nem ‘por que continuo?’ nem ‘por que não posso continuar’… mas ‘como continuar?’”. A escrita, em Perec, é necessária e fundamental para enfrentar seus fantasmas nazistas e, assim, compõe uma obra distinta e peculiar que trabalha e discute diversos problemas relacionados à literatura e também ao testemunho.

Mas talvez o seu trabalho mais enigmático e que mais se relacione com a Shoah é o seu livro La Disparition. Esse livro é escrito através de uma restrição chamada lipograma, que subtrai a letra e – no caso, a mais frequente do idioma francês. Uma das explicações possíveis para a subtração do e é o de fazer referência à sua privação do convívio com seus pais imposta pelos nazistas. Se os nazistas o fizeram viver sem a presença dos pais, Perec, acreditava, seria capaz de escrever um livro com mais de trezentas páginas sem usar a letra mais importante do alfabeto francês. Perec o fez, traumaticamente, assim como gerações e gerações viveram e vivem à sombra dos eventos traumáticos de Auschwitz.

Outro livro muito importante que mostra a difícil relação entre os sobreviventes e seus filhos é Maus, de Art Spiegelman. Representante de uma segunda geração da Shoah, Art Spiegelman constrói uma obra de arte, através de desenhos animados, para tentar representar o irrepresentável mundo dos campos de extermínio. O filho conta a história traumática de seu pai, suas perdas, seus sofrimentos e suas dores tentando entender a estrutura nazista. Além disso, Art revela as difíceis lembranças e as privações sentimentais de que foi vítima, enquanto filho de um atormentado sobrevivente.

Já o livro impactante Second Generation Voices: Reflections by Children of Holocaust Survivors and Perpetrators, além de trabalhar com os depoimentos dos filhos de sobreviventes, mostrando essa difícil relação sentimental e o legado traumático, apresenta alguns testemunhos de filhos de perpetradores nazistas. Alguns descobriram esse passado terrível de seus pais e tiveram que suportar e conviver com essas monstruosas lembranças dos outros. Alguns, tocados por tamanha desgraça, resolveram se esterilizar para dar fim ao legado de seus progenitores nazistas.

O assunto é tocante, comovente, duro, mas importante e fundamental para entendermos a sociedade contemporânea. Compreender melhor as lembranças, criações e representações da Shoah ainda é tentar entender o passado nas possíveis manifestações do presente.

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Jacques Fux venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2013 com o livro Antiterapias , além do Prêmio CAPES de Melhor Tese de Letras/Linguística do Brasil em 2011.  É pesquisador visitante – Universidade de Harvard (2012-2014), pós-doutor em Teoria Literária – Unicamp e pós-doutorando em Literatura Comparada – UFMG