* Por Raimundo Neto *

Sempre que alguém pergunta sobre as resenhas críticas, digo que minhas leituras são afetivas e que a escritura da resenha não é em nada técnica. Muitas vezes não produz sentido apontar aspectos e fiapos negativos da obra, vale muitas vezes a profundidade em mim que a obra alcançou. E sobre isso, penso que há muitos caminhos para resistir a diversos modos de opressão e controle. E um dos caminhos é deixar-se afetar pela dor (escrita, falada e contada, chorada, silenciada) dos que nos cercam, perto ou longe. Foi assim quando Pai, pai, de João Silvério Trevisan, passou pelos meus dias.

A leitura não é fácil. As palavras chegam arranjadas com maestria, sem dúvida. Entretanto, em alguns momentos, o cansaço ronda a disponibilidade para continuar e, como leitor, refleti nesses momentos: Sou eu ou o livro? E entendi apenas no final dos percursos do livro: são meus conteúdos afetivos, todos revirados de lembranças e feridas descosturadas. É isto: o livro de João Silvério provoca um mergulho inescapável. Inescapáveis também são algumas experiências: ninguém escapa de ser filha e filho, e todas as escolhas de pais e mães ensinam às filhas e filhos o que aprenderam sobre ficar e partir, sobre permanência e fratura, sobre reproduzir ou trair as tradições (muitas vezes violentas) familiares.

Muitos aspectos identitários de muitas e muitos sujeitas e sujeitos (mesmo aquelas e aquele que não se sujeitam a nada ou pouca coisa) passam pela sexualidade. Não apenas pelos caminhos marcados no corpo físico, mas também pelo corpo das palavras que nomeiam.

Assim, no livro de João Silvério, as trágicas vivências de violências que só um menino gay em contexto absurdamente machista, que cresce sem entender o amor e o ódio, de onde vinha o desentendimento pelo que é sagrado e o que é o profano que, principalmente, a figura paterna berrava. As dolorosas vivências de violências de um jovem adulto em contexto absurdamente conversador de um seminário, de onde vinha o tortuoso e desnorteante desentendimento pelo que é sagrado e profano. É assim: pelos capítulos, algumas repetições surgem, afloram, e incomodam no começo. Entendi que são necessárias, para a obra e para o autor: contar até a exaustão, queimar as feridas e deixar incendiar até a catarse.

Talvez por isso João repetiu e escreveu. Narrar-se para permite-se sua identidade que acende, a sexualidade que resiste; narrar-se para buscar ser para além das violentas expectativas paternas. O personagem, e o autor que conta o livro, buscam superar os estigmas a partir da literatura “desenvolvida na contramão de tudo que a minha família paterna desdenhava” (pág. 53) O filho João aprendeu sobre o medo e sobre o ódio, aprendeu o que parecia ser o avesso de quando se ama, pelas mãos e berros – pela indiferença – paterna, embora houvesse os cuidados da mãe, e narra-se para não se repetir no pai como filho.

Na arqueologia dos não-ditos e das violências, Trevisan, o filho, escava a memória para curar-se. Superar não é esquecer e vencer, superar é olhar fundo para feridas que latejam, lembrar-se dos detalhes do pai José, dos gestos nas palavras que agrediam, aproximar-se do pai para seguir adiante.

Uma escritura de um livro de autenticidade inquestionável. O homem crescido para além de filho entende agora os rastros deixados da figura paterna em suas obras. Não o agora como um tarde demais, mas um Agora que ainda é processo.

Ao longo do livro, muitas referências a espetáculos de teatro, músicas, arte manifesta em na literatura escrita e lida, diversos caminhos pelos quais as dores de João Silvério Trevisan proclamam suas saídas. E é na literatura que João encontra “a tábua transformada em barco de salvação, que tantas vezes tornou minha trajetória menos tormentosa” (pág. 36). Assim, o livro é inundado de referências e muitas das lágrimas de João Silvério numa tentativa de superar estigmas a partir do que é escrito. Todas as obras lidas, encenadas, representadas, escritas e ouvidas como catalisadoras e processos catárticos. A arte como uma possibilidade de transfiguração.

A narrativa de João Silvério Trevisan conta sobre nós todos que buscamos lar no afeto nascido nx outrx que descobrimos em nossos caminhos. Nós, que, de muitas e inumeráveis maneiras, fomos violentados por mãos rijas, palavras cortantes e chantagens desorganizadoras de nossas identidades. Nós que estamos sozinhos, e não estamos sozinhos; nós que sentimos vazios soterrantes no peito e nos olhos abertos choros inconsoláveis. É sobre nós e nossas marcas invisíveis aos olhos nus, é sobre nossos corpos tocados pelo vigor de mãos adultas de homens e mulheres que nos sabiam frágeis e tolerantes e por isso fechavam-se sobre nossa infância, ofegantes. É sobre buscar também não reproduzir em nossas vidas adultas as relações paternas que nos gritam o tempo todo. A escrita de João Silvério é uma porta aberta para o recomeço.

O livro de João Silvério Trevisan é sobre resistir e reescrever a história que está para além da dor de ser apenas filho. É um mergulho, e no fundo estamos nós, cada leitor, nossas dores de não sermos apenas as expectativas violentas que nos ditam.

João, o filho, não olha para trás.

É para dentro que ele espia e enxerga-se tão outro.

O João que começa o livro, o personagem, e o homem que escreve, chegam ao fim da obra (que nunca é o final da jornada) outros.

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Pai, pai, de João Silvério Trevisan (Companhia das Letras, 256 págs.)

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Raimundo Neto é escritor e crítico literário

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