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* Por Jacques Fux*

Em seu belo discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Guimarães Rosa profetizou: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”. E, para nossa imensa surpresa e tristeza, quatro dias depois de se tornar “imortal”, o grande escritor se encantaria para sempre.
Apesar de ser parte integrante e fundamental da vida, a morte é encarada com receio, recalque e até certo medo. E se para nós, adultos, é tão difícil enfrentar esse grande mistério, como seria possível explicar esse desaparecimento para as crianças?
Maria Eduarda de Carvalho, autora e protagonista de Atrás do Mundo, resolveu encarar esse desafio. Durante sete anos, viveu a imensa alegria de ver sua filha, Luluba, crescer, porém sem deixar de se recordar da morte de sua irmã, Maria Antônia. Parceiras, melhores amigas e cúmplices, Maria Eduarda fez questão de encher a vida de Luluba com as doces lembranças e memórias de sua querida irmã. Mas ela queria mais, muito mais. Queria provar o encantamento verdadeiro das vívidas reminiscências de sua irmã. E assim o fez, com primazia, ao conceber a belíssima peça Atrás do Mundo.
Dídia, a doce e “reportiva” menina, mistura da Alice, de Lewis Carroll, da Dorothy, de L. Frank Baum, e de Chihiro, de Hayao Miyazaki, nos brinda com a arte do fascínio. Ela, impossibilitada de continuar chorando – por ter um nó cego na garganta – e pelo dor do desaparecimento de sua irmã, teme, e teme muito, perder as memórias, os carinhos, o perfume e o sorriso de Maria Antônia, a amiga-irmã que virou estrela. Seu sonho é viajar pelas galáxias para re-conhecer e ressignificar a perda. Essa falta imensa e quase insuportável que o amor de um amigo nos faz.
Porém, memórias assim, tão sensíveis e afetivas, não podem e não devem ser somente ditas e explicadas. Elas precisam ser poetizadas, vivenciadas e embevecidas pelo poder das palavras e das imagens. Atrás do Mundo nos presenteia com sua tessitura repleta de intertextos, sorrisos e abraços. O Doutor Manoel “de Barros” Mirolho, especialista em “desver” – ou melhor, em “transver” a realidade – receita, ao longo da peça, doses homeopáticas e líricas de ficção e deslumbramento para reconstruir a história de Maria Antônia. Guigo, o engenheiro “cepsino”, talvez uma mistura de João Cabral e Le Corbusier, é o responsável por confeccionar as muitas “máquinas de comover” (machine à émouvoir). Ele também inventa e desconstrói “pontos de vistas”, certezas e sonhos. E ainda confecciona uma surpreendente engenhoca – à la Júlio Verne – que levará as crianças ao céu, à utopia, ao faz-de-conta que torna possível – e talvez suportável – aceitar os desígnios incompreensíveis da vida, da morte, da arte.
Adultos e crianças têm se emocionado de formas diferentes com Atrás do Mundo. Os olhos atentos, extasiados e telescópicos dos miúdos se espantam diante da consumação da fábula, da brincadeira de faz-de-conta levada tão a sério, a ferro, a fogo e sonho que o teatro e a imaginação possibilitam. As lágrimas, os soluços e os sorrisos dos miúdos-crescidos são ouvidos e compartilhados quando o “alarme do recalque” – esse que camufla e abafa as lembranças e as vivências da infância e da perda são deixados de lado em nome da fruição. E é em Atrás do Mundo que pais e filhos se abraçam e compreendem que a arte não salva ninguém. Mas acolhe, aconchega e ajuda na busca do encantamento da vida que muitas vezes deixa de existir cedo, cedo demais.

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‘Atrás do Mundo’,  no Teatro Ipanema. Mais informações aqui.

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Jacques Fux é escritor

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