* Por Kátia Gerlach *

O meu amigo Cronópio, com quem leio, à distância as cartas de Julio Denis, ou Cortazar, exige que eu corra para descobrir a obra de Leopoldo Marechal, autor de Adan Buenosayres, que inspirou um artigo por Cortazar em 1948.  Cortazar, nascido na estreia da primeira guerra mundial em Bruxelas, Bélgica, um escritor que não arriscou perder o humor e que nos inspira diariamente. Não é preciso ler Cortazar inteiro, pode ser em pedaços, em fragmentos e a alma sempre leva algo consigo. A saber, o seu Manual de instruções nas histórias de cronopios e famas.

Reconto ao meu amigo e correspondente Cronópio, o que hoje me sucedeu neste pequeno vilarejo cercado por montanhas que não param de derreter desde o fim da era do gelo.  O Monte Mansfield e o Pico Spruce já foram mais altos do que o Himalaia, agora parecem dois bolos saídos do forno, macios sob o céu, um mixto de nuvens e azul volante.  O azul voa com as nuvens e toca na superfície por onde caminho com sutileza divina.

Neste percurso matinal, aproveito para tirar fotos das casas desoladas, dos campos recém descobertos pela neve, das erosões provocadas pela água que não interrompe a sua descida da montanha, em ritmo de enxurrada, os seixos de ouro, cobre e prata amaciados por esta força que é a água, das árvores que juntas compõem um cemitério muito próprio e que aguarda a primavera para ressuscitar como Jesus faz nas lições de casa do meu filho, quando estuda a Páscoa e me diz desacreditar no que lê porque lê ficção que lhe convencem ser uma obra de não ficção.  Concordamos que Jesus Cristo existiu e conversamos sobre parábolas, o que significam, à guisa do contexto dos contos de Grimm ou Perrault.

Ao tirar fotos e gravar os sons da água e dos pardais minúsculos, sou surpreendida por um um cão labrador com uma coleira de neon fosforescente em torno do pescoço.  O cão não hesita em subir em mim e penso em como os cães não estão sabendo das novas leis de distanciamento social.  Temos que estar a seis pés uns dos outros.  Deito um corpo mais alto do que eu no chão e calculo os seis pés. Tenho apenas cinco pés e uma ou duas polegadas de altura de modo que acrescento algumas polegadas à sombra que produzo na terra.  Ocorre que o cão me pegara de surpresa, quando esperava andar neste campo sem sentir o calor de nenhum organismo vivo e muito menos encontrar a saliva canina no meu cachecol.  Ninguém me salva desta situação, a dona do cachorro não parece haver lido que o novo vírus começa a ser diagnosticado em animais domésticos, o que não surpreenderia dada a simbiose entre seres humanos e seus animais de estimação.

Mas o que fazer? O cão desconhece as novas regras.  No futuro, também os cães aprenderão sobre as distâncias seguras, os espaços neutros, as relações corporais nesta inesperada revolução. Desde o pecado original, não se revolucionou tanto a relação entre os corpos.

Sigo a caminhada e o desejo de fotografar as lagartas felpudas, as espigas de milho quebradas e secas, a lama e a relva, as casas de madeira distantes, me toma, uma vez mais, o desconforto da saliva do bicho e o medo que me assombra nestes dias.  Estou no décimo dia de uma quarentena auto imposta, antes que o governador de Vermont decretasse uma nova lei que exige quatorze dias de quarentena aos recém-chegados a Vermont.  O governador explica que o estado de Vermont não quer visitantes.  Gostaria de explicar ao governador de Vermont que sonho em visitar Vermont desde os 15 anos e que este era o destino que pretendia para o meu programa de intercâmbio, que me levou para San Angelo, na parte central do Texas, noutra ponta do país.  Temo que realizar o sonho de estar em Vermont numa hora em que a humanidade passa por uma pandemia faz de mim uma Fama e arrisco perder a minha condição de Cronópio diante do meu amigo e do mundo.  Vejo-me tola e egoísta.  Deixei para trás Nova York, a cidade que me acolheu como imigrante nesses anos todos, fraquejei, não consegui encarar as sensações de um segundo ataque como o 11 de setembro.  Sou pequena como a minha altura.  Quis proteger a minha família das cenas trágicas, da claustrofobia de um cidade trancada.  Até hoje, nas vésperas do feriado do Memorial Day, choro quando ouço os aviões caça sobrevoando Nova York.

Nos campos de milho, fotografo os tratores estacionados.  Ainda não vi fazendeiros, não sei a que horas trabalham, embora deixem pistas como as colinas de terra adubada com a qual cobrirão as plantações de milho.

Noutro dia, noutra caminhada, um menino que corria para frente e para trás com um patinete recuou para matar uma lagarta felpuda.  Pisoteou-a, espantando-me com a sua maldade.  Sei que vou morrer sem compreender a maldade, seja ela como jogo, brincadeira, ato inocente ou ação maliciosa.  Tem horas que sinto pena dos maus, dos lobos em pele de carneiro.  Quanto ao menino que matou a lagarta, temo que o exército dos maus o recrute no futuro.

Do outro lado da plantação de milho, há uma casa vermelha chamada de “Swim Hole”, onde há uma piscina interna.  Como gosto de nadar, olho para as suas portas fechadas com tristeza.  Sempre viajo com o que preciso para natação e desta vez não foi diferente, Dias melhores virão.  Subo a colina asfaltada.  Decido não avançar pelo caminho onde avistei os cardeais vermelhos porque a hora do almoço se adianta e este passeio incluía uma compra na peixaria.

Antes de entrar na peixaria, reparo que esqueci a minha máscara em casa e me consolo com as luvas de plástico.  Na porta, há um sinal pedindo que o número de fregueses se limite a seis para que as regras de distanciamento dos corpos sejam cumpridas.  Pelo vidro, reparo que a loja está vazia e entro com as minhas mãos cobertas, não quero tocar em nada.  Sinto medo, de novo, e tento controlar o tamanho do meu sorriso.  Como ainda consigo sorrir, me pergunto.  Mas quero sorrir, sorrir para os funcionários da peixaria, conversar, vamos ser alegres por alguns instantes.  Nunca experimentei esta vergonha por sorrir.  É como se estivesse sorrindo num funeral e que graça há na morte de alguém? Virei Fama, só pode ser, ajude-me, amigo Cronópio!

No fundo da loja, toca Pink Floyd e automaticamente lembro-me de quando andava pelo Whitehall em Londres, com o walkman hoje obsoleto tocando The Wall e observava a segurança em torno do Parlamento inglês que recebia a visita da primeira ministra Margaret Thatcher e Gorbachov.  Era a época da Perestroika.  Os atiradores se posicionavam acima de nós e não sei como fui parar naquela cena, assim como ignoro o que me traz a Stowe, afinal de contas, há tantas cidades em Vermont e ao redor de Nova York.

“Você está ouvindo Pink Floyd! Esta música me lembra da guerra fria,” digo ao vendedor da peixaria, que se espanta com a conversa para tão logo me revelar: “Estou deprimido… quase dormimos hoje aqui, sem movimento de freguesia…”  “Coloque música brasileira, um samba, algo alegre… Ou Pedro Martinez! “, sugiro.  A conversa segue, ele tem um amigo que queria ir para Madri na Espanha, com passagem comprada e tudo, e que já visitou Miami, ou melhor, que viaja sempre a Miami, quase um outro país desta Stowe colada ao Canadá.  Compro dois filés de Halibut temperados com molho adocicado de chili, o pagamento é sem tocar em nada, basta enfiar o cartão de crédito na máquina e retirá-lo.  Amanhã me prometo retornar pelo salmão e mais uma conversa sobre o amigo preso em Stowe.

As florestas de Vermont me conquistam pela paz, enquanto o menino assassino de lagartas felpudas se incorpora aos meus pesadelos, e os anúncios para que adquira uma licença de posse de arma e, quem sabe, uma arma também me aterrorizam.  Em Vermont, a posse de armamentos é permitida para maiores de idade.  Ontem, um sujeito vestido com uma calça de soldado e uma suéter de civil me interpelou para dizer que o seu médico lhe confidenciou que os casos de coronavírus começaram a cair no estado e os números só dobram de cinco em cinco dias.  O homem era calvo, pedalava uma bicicleta de montanha e se fazia acompanhar por um pastor alemão.  Na cintura, um cinto com estojo para um revólver e faca.

Um ardor inquieto.  Eis que Baudelaire me explica o que trago no peito.

Por fim, recebo uma mensagem otimista do meu tão querido amigo Cronópio, pressão 12 por 8, tudo tranquilo.  Suspiro aliviada.  Os números, os números. Os números nos tem regulado.  Índices econômicos, curvas exponenciais, gráficos que contabilizam doentes e mortos, certezas tão incertas.  Ao chegar em casa, sigo os procedimentos recomendados, lavo as mãos e canto feliz cumpleaños durante vinte segundos, alguém faz aniversário hoje, um primo que mora em São Paulo (nascido no dia primeiro de abril, ninguém na família acreditou), troco as roupas e atiro-as na máquina de lavar.  Sair uma vez ao dia me basta.  Respondo com mais uma mensagem ao meu amigo Cronópio, os cisnes voam entre nós e a nossa correspondência tem o requinte da posteridade.

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Kátia B. de M. Gerlach é escritora natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York desde 1998. Autora dos livros Colisões Bestiais Particula(res) e Jogos (Ben)ditos e Folias (Mal)ditas publicados pela editora Confraria do Vento.

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