N95 E OS NUS

* Por Alexandre Rabelo * 

Assim que coloco o respirador N95, sinto um calor subir pela cabeça, não por efeito do abafamento, mas por vergonha mesmo. Puta coisa feia, grita minha vaidade indignada em não poder mostrar a cara. Somo a esse desconforto aquele bom bocado de ansiedade, minha própria voz martelando “para de tentar compensar a ansiedade pela boca, para de fumar, de comer, de falar sem pensar”. E agora vem essa maldita mordaça a selar o pacto do controle. Essa máscara é a face exposta do meu medo, assumindo por mim uma fragilidade banal e ainda de modo tão performático. Mais e pior, vestir a máscara é ter de admitir que não quero morrer, que tenho sim meus projetinhos para uma vida melhor do que essa que fui levando com a barriga.

Encolho a barriga para sair do apê, já me chega não poder dispor do meu rostinho safado. Parece que não sei andar direito, fico inseguro de parecer casual demais para a gravidade da situação ou travado em excesso como a classe média que tanto critico. Dou de cara com a vizinha do andar de baixo subindo com as compras. Fico com raiva de vê-la na vantagem de estar sem máscara e ter uma lycra confortável dividindo bem as duas bandas da xereca. Ela nunca está nem aí pra nada, não tem vergonha de nada do que tem ou não, nem é cara de pau de querer ter mais. Garanto que acha que a pandemia é conversa pra boi dormir ou, no máximo, mais uma novidade fugaz em seu hall de entretenimento.. Mas não é rebelde o suficiente para escarnecer da nossa cara. Será que consegue ver meu misto de inveja e desprezo por detrás da máscara? Pelo menos, tenho a decência de aquiescer um cumprimento com a cabeça, aceitando que entre nós deveria haver algum senso maior de solidariedade, nesse momento de crise da humanidade. E, mais uma vez, como sempre que lembro da palavra humanidade, imagino fogos de artifício e aviões pirotécnicos soltos por homens brancos bigodudos. A verdade é que desejo que boa parte da humanidade morra, principalmente os eleitores do presidente. Quanto a vizinha, nem isso ela é. Votou no meu candidato. Agora sobe as escadas com a mesma displicência de um vira-lata velho, enquanto olho aflito para seus calcanhares saindo das havaianas e tocando o piso, e imagino todos os vírus atravessarem aquela casca mais grossa que minha misantropia.

Chego na rua já tendo ultrapassado minha cota diária de humanos. Antes dessa coisa-pandemia acontecer, eu já preferia ficar a maior parte do tempo em casa, esgueirando-me do pandemônio da superpopulação. Tinha conquistado meus ajustes para não precisar de uma empresa e, quando saía para ir até o centro nervoso da cidade tomar um drink com os amigos, tinha a sensação de ter atravessado o Atlântico e o Sahara para chegar no Marrocos meses depois. Agora, ao contrário, tudo o que quero é andar pela rua deserta, sentindo os ventos que não visitavam São Paulo há décadas, as revoadas de pássaros que se orientam melhor sem os carros, o céu que não chora nem ri de nosso confinamento, mas que nos olha cada vez mais de cima. Pelo menos, nesses dias de quarentena, gosto um pouco mais de ver as pessoas perdidas na rua, cheias de fogo acumulado, tendo de ir e vir de seus objetivos curtos e rasteiros como comprar pão ou água sanitária. Seus olhos brilham como se chegassem em Paris e não soubessem por onde começar. Não era bem assim antes.

Viro uma esquina e dou de cara com uma menina ruiva de máscara. Parece que sempre a usou. Deve ser daquelas que vão de um edifício a outro em carro blindado, desde que nasceram. Seus passos são duros e rápidos como que para compensar o fracasso dos fios rebeldes despontando na fronte, mesmo puxando tudo para trás com creme europeu. Não tenho ideia de como possa ser seu rosto, mas, se pudesse vê-lo, talvez o medo vincando sua boca não me permitisse ver o desejo que agora flagro nitidamente em seus olhos. Ela finge que não é comigo, mas adivinho que parte de sua atração por mim é perplexidade por me ver tão calmo ou sem rumo. Ela me dá aquela sensação gostosa de quando percebo os ricos reconhecerem como o corpo dos pobres é mais fluido. Agora faz todo sentido andar a esmo, mesmo sendo minha primeira vez com a N95. Até deixo que ela pregue na minha cara como um beijo apaixonado, mas evitarei que filtre tudo.

É então que o vejo. Está do outro lado da rua e também usa uma N95, mas o modo como pega no pau e olha pra mim bate em meu peito como se estivesse nu do meu lado e fosse eu a adolescente ruiva. Veste uma daquelas camisas polo baratas com duas listras grandes que todo trabalhador usa pra fingir certo alinho. A calça jeans surrada favorece a patolada precisa que repete com gosto. Não sei se está na faixa dos trinta ou dos cinquenta, mas posso apostar que é pai de família. Pega no pau com a praticidade profana dos casados há muito tempo. Intuo que, se estivéssemos sem máscara, não agiria assim tão desavergonhadamente. Ele não sabe se olho com vontade ou asco. Nem eu. E o que mais me maravilha é suspeitar que, graças a essas malditas máscaras, e apanhados pelo medo e cautela assumidos, somos mais verdadeiros. Onde eu via homens mais controlados, passo a ver animais à solta. Ele não me julga pelo meu rosto, e essa abertura é recíproca. Apenas suponho, sem muita firmeza, que seja feio por ser maltratado, enquanto o que mostra é um tesão mais vivo e jocoso que minha misantropia. Ele também não sabe se sou feio ou bonito, jovem ou velho, apenas sabe, sem formular conscientemente para si mesmo, que o objetivo de meus passos não é tão claro assim. Penso que nem meus amigos frequentadores de casas de BDSM têm essa liberdade, pois sabem julgar o preço exato de cada máscara de couro, látex e metal, de cachorro ou outro bicho, de  bicho nenhum. Sabem o preço de cada fetiche.

Aqui, na rua deserta pela insegurança de um inimigo novo, invisível, desconhecido, inconsciente e amoral, tento blefar pra o homem de N95 do outro lado da rua,  olhando para o horizonte como se não me importasse com ele,  mas ele sabe que é mentira, não tenho mais um rosto que possa mentir, apenas um corpo no ato falho inútil de tentar ocultar um desejo. Nunca estive tão coberto, nunca estive tão nu.

Seguimos por lados opostos e, quanto mais nos afastamos, mais posso sentir que habitamos a fantasia um do outro por uma duração que em outros tempos não nos seria dada. No sangue, correm todos os dias da história da tal humanidade. E o céu volta a  parecer mais baixo e estúpido, como merecemos de um domingo outonal.

*

Alexandre Rabelo é escritor, graduado em História e Letras pela Universidade São Paulo. É autor dos romances Itinerários para o fim do mundo (Patuá, 2018), Nicotina Zero, um livro de antiajuda (Hoo, 2015) e um dos organizadores e autores da antologia de prosa e poesia A resistência dos vaga-lumes (Nós, 2019), livro que reúne 61 dos principais autores LGBT brasileiros. Desde 2018 dirige o “Mix Literário”, evento anual que congrega debates e ações sobre literatura queer no Festival Mix Brasil da Cultura da Diversidade, o maior do gênero na América Latina.

*

Foto: Reprodução (autor desconhecido)

Tags: