Foto antiga

* Por Ricardo Ramos Filho *

Talvez seja o tempo, muitas vezes brincalhão, ou memória escondida em mim, certos fragmentos de lembrança costumam inserir-se no cotidiano sem aviso prévio, chegam fagueiros, íntimos, como se tivessem feito parte da rotina desde sempre.

Posto-me em frente à foto enviada por um afeto menos presente do que gostaria, afastamentos solidificam-se com a pandemia. Comporto-me como se estivesse sentado no velho banco de madeira de minha escola primária. Há silêncio, estamos todos concentrados na lição apresentada, composição descritiva, a professora pendurou uma ilustração grande em um prego centralizado em cima da lousa. Nela há um riacho, dia ensolarado, e um menino com roupas simples pesca com ar sonolento. A varinha fina de bambu pende, quase mergulha na água. Ao fundo, em uma encosta, aclive semelhante a um pequeno morro, modesta, embora elevada, avista-se uma casinha com porta e janela azuis, paredes caiadas. A poucos metros do pescador um passarinho tem os olhos curiosos. Eu diria que é um pintassilgo, caso soubesse classificar as aves. Parece esperto e ao mesmo tempo triste. Ágil e moroso. Carrega sobre as asas sobressaltos. Ou será apenas impressão minha? Acalorado na classe também preguiçosa, sombria e abafada, manhã de verão, desejo, sempre desejei, construir texto perfeito. Ideias claras e então, de repente, pouco nítidas, alternam-se deixando-me inseguro. É possível que o pardalzinho esteja bem e tudo seja apenas resultado de indisposição passageira. Percalços da redação a ser construída. Na época a angústia de escrever já pesava sobre meus voos. Pressão que se tornaria mais conhecida no futuro, invariavelmente incômoda. A atmosfera do cenário embaçada, miopia que já se manifestava e só mais tarde me condenaria aos óculos. Delícias da vida no campo. Encontrávamos em boa parte dos livros lidos aquela paisagem. As aventuras aconteciam em fazendas, sítios, sonhávamos com férias, cavalos, bois, animais de criação. O mundo rural tido como preferível ao encontrado nos grandes centros.

Volto à fotografia. Nela há um rapaz. Deveria ser eu. Contudo, o moço é outro, bem diferente, já não exibe o mesmo viço. Perdeu a barba, operou os olhos, não mais exibe óculos de lentes grossas. Agora enxerga bem. Mas envelheceu. Se aquele com a camisa aberta no peito, o do tempo pretérito, olha para longe, muito sério e consciente de sua força, meio deus, meio homem em sua juventude, o outro, o de agora, sabe-se frágil embora grande, forte, saudável. Ganhou cabelos brancos, dores físicas e metafísicas. Lida bem com as primeiras, sofre com as segundas. Desequilíbrios. O que busca assim distante o jovem com aparência revolucionária? Rosto coberto de pelos vermelhos bem aparados, bolsa à tiracolo de couro. Comunista! – Alguém brada. Eles possuem estereótipos?  Todo jovem da época tinha um pouco de Guevara. Volver a los diecisete. Embora esteja mais rodado no retrato. Vizinho aos trinta. Entre um e outro cerca de quarenta anos vagam. O viking, tufos rubros densos sobre o rosto e queixo, observa o futuro confiante. É nórdico, guerreiro, Valhalla, morrerá guerreando. Olhos duros e tristes perscrutam o tempo vindouro. As runas de Odin não trazem nada. O porvir do moderno é desatento aos oráculos. Então por que sombrios os pontos castanhos abaixo das sobrancelhas? Talvez por dominarem um pouco os sonhos. No fim da estrada, lá na frente, existem dores espalhadas pelo chão, rastros. Entre elas e o depois vive a agonia de não frutificar, o infortúnio. Intuição. O garoto se viu mais tarde estéril, apenas ponto final. Foi num átimo, flash da câmera Polaroid, mas o futuro apareceu para ele ignóbil. E o velho, aquele enorme e quebradiço, se espatifou em uma dobra de um buraco negro. Ponto de não-retorno. Sobrou o menino pescando, pendurado no meio do giz, o sanhaço ao lado.

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Ricardo Ramos Filho  é escritor, com livros editados no Brasil e no exterior. É Professor de Literatura, Doutor e Mestre em Letras no Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisa na área de literatura infantil e juvenil, onde vem trabalhando academicamente Graciliano Ramos – seu avô -, privilegiando o olhar sobre seus textos escritos para crianças e jovens. Ministra diversos cursos e oficinas literárias: como aprimorar o texto, literatura infantil, roteiro de cinema, poesia, conto,  crônica, romance. É roteirista de cinema com roteiros premiados. É orientador literário e analista de originais, colaborando com escritores na elaboração de seus livros. É cronista do Escritablog , publicando no espaço Palavra de Cronista, e do InComunidade, revista de literatura do Porto, Portugal. Participa como jurado de concursos literários: Proac, Portugal Telecom, Prêmio São Paulo de Literatura. É presidente da União Brasileira dos Escritores (UBE), São Paulo. Como sócio-proprietário da Ricardo Ramos Filho Eventos Literários cria e produz eventos culturais. Possui graduação em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986).

 

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Ilustração: Escultura de Pino Pascali

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