Born in Panamá. O orgulho aparece por escrito no bordado sobre as estrelas da bandeira, nas costas de muitos dos panamenhos que vivem nos Estados Unidos e vieram para a festa do centenário da independência. Em 3 de novembro de 1903, o país separou-se  da Colômbia, com o apoio dos Estados Unidos, interessados na construção e exploração do canal que, ao ligar os oceanos Pacífico e Atlântico, encurtou de forma significativa o tráfego de navios, gerando lucros extraordinários. O canal foi administrado pelos Estados Unidos da América do Norte, que usufruíram, na Zona do Canal, de prerrogativas de solo norte-americano até 1999, quando foi entregue ao governo panamenho; dele provém parte significativa do PIB do país.

Cidade do Panamá, 2 e 3 de novembro de 2003.

Meia noite. Em meio ao movimento intenso de festa, tiros de canhão ao fundo, o jovem dorme na calçada, indiferente; em um muro na rua, o poema mostra-se bem ativo:

Cantinho afro-antilhano

 

Tontos de calor e noite passam quartos,

quartos, quartos

quartos de gente pobre com suas

crianças descalças

quartos onde não entra o sol

porque o sol é aristocrático.

Demetrio Herrera Sevillano [1]

 

Dia 3, pela manhã, a obrigatória parada comemorativa. A exuberância das indígenas de Dárien (foto em destaque), suas belas, longas e rodadas saias, as jovens balizas à frente da banda, escolares com uniforme de gala, soldados, o público entusiasmado. No mercado de artesanías, os vasos feitos com palma negra, as sementes de tagua – o marfim vegetal –, que serve para esculturas de animais; as canetas de cocobolo, vendidas em estojos também de madeira ou de mola e confeccionadas com esta madeira nobre da América Central. Compro várias molas, para mim e para presentear. O indígena que nos atende elogia as molas do Panamá, mais belas que as da Colômbia, porque “eles” vêm comprá-las aqui. Confeccionadas pelos Cunas, indígenas de San Blas, as peças mostram lindos efeitos nas formas reveladas pelas camadas de tecidos sobrepostos, unidos, recortados, dobrados e costurados. Primor da arte têxtil dos povos da região que hoje é conhecida como América Central, as molas traduzem a pujança de uma região e de uma cultura.

No city tour que compramos, o senhor Lara diz que não iremos à “parte feia da cidade”, Panamá Vieja. Me pergunto sobre essa confusão de conceitos: desde quando o antigo ou velho é feio? As cidades costumam se orgulhar de seu núcleo inicial, exibindo-o como o centro da história posteriormente acontecida. Nesse pensamento, mostra-se de maneira nítida a mentalidade da colonização norte-americana, reconhecível em inúmeros aspectos. Decerto, ele gostaria de nos mostrar apenas as construções exuberantes, marco de uma cidade moderna, americanizada. No entanto, como o trânsito está desviado em função das festividades, o trajeto leva-nos a passar por bairros populares e conhecer a cara mais genuína da Ciudad de Panamá. Imóveis com duplo uso de residência e comércio apresentam escritos variados, Salla de Belleza Rachel. Um caminhão de supermercado passeia o recado devido.

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O maioral da economia[2]

Os quintais, as plantas, as fachadas, os escritos – que chamaríamos toscos a muitos deles –, a tabuleta que indica um espaço bem conhecido do Brasil:

Centro de Apoio à Mulher Vítima de Violência[3]

Este cenário, a anteceder a exuberância e arrogância do canal: como não América Latina, João Ubaldo?

Perdeu-se em meio às minhas notas, mas conservou-se bem na memória, o encontro de que participei, creio que no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, em que escritores e outros intelectuais discorriam sobre a posição do Brasil como parte da América Latina. Como era do feitio dele, João Ubaldo debochou da ideia, “não sei de nada disso”, ou algo assim, negando de forma clara nosso pertencimento a uma consciência ou cultura latino-americana – ou mesmo a sua existência. Deve ter sido no final dos anos 1990, este Diário não cabia ainda em minhas páginas de vida – para fazer um pouco de literatura e disfarçar a perplexidade que me alcança neste lugar que, trocando-se o idioma, é absolutamente reconhecível como brasileiro.

Chegamos às Esclusas de Miraflores, ingressos, explicações, buscar um bom lugar para assistir ao sobe e desce dos navios. Falstaff, um cargueiro para transporte de carros e caminhões, cujo nome aparece diminuto no casco em relação à companhia norueguesa a que pertence

Wallenius Wilhellmsen

aguarda sua vez. O senhor Lara elogia a obra de engenharia materializada à nossa frente; entre as informações de que 55.000 USD é o menor preço a pagar pela travessia, que são cerca de 38 a 56 barcos por dia e outra, que verifico mais tarde não proceder ou ter sido mal-entendida, é Drummond quem me dá o caminho:

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que

tem uma América Latina

no meio do caminho.

No meio do caminho está uma América Latina.

 

[1] Original: Pueblito afro antillano / Zonsos (sic) de calor y noche pasan cuartos, / cuartos, cuartos / cuartos de la gente pobre con sus / chiquillos descalzos / cuartos donde no entra el sol / porque el sol es aristocrático. Demetrio Herrera Sevillano

 

[2] Original: Saca la cuenta y date cuenta / Super / Xtra / Los amos del ahorro

[3] Original: Centro de Apoyo a la Mujer Maltratada

*

Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

 

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