* Por Rodrigo Naves *

O que tem um desenho de Luiz Carlos Prestes feito por Portinari que os outros desenhos não têm? Afora a virilidade angulosa dos traços — o que faz pensar que para o realismo socialista o marxismo não era mais que uma academia de musculação — e o poder evocativo da personagem, rigorosamente nada. Já para Aracy Amaral, encontramos ai um exemplo da “preocupação social na arte” — tanto que nada menos de três retratos de Cavaleiro da Esperança estão reproduzidos em seu livro Arte para quê? (Nobel, 1985).

Afirmando que “o preconceito em relação à abordagem conteudística da produção artística tem impedido a apreciação da preocupação social na arte de nosso tempo”, Aracy Amaral traça um longo painel da chamada arte social no Brasil, no período compreendido entre 1930 e 1970. Das primeiras manifestações de politização às discussões do CPC e do MPC, a autora coloca em revista, numa pesquisa de muitos méritos, toda uma trajetória do debate artístico no país, passando por Lívio Abramo, Portinari, Di Cavalcanti, Segall, a experiência dos Clubes de Gravura, a discussão entre abstracionismo e realismo e a função social da arquitetura.

Mas como “o tradicional preconceito da critica” (p. 23) contra o conteudismo deve ser coisa muito arraigada, a autora não se limita a dedicar 353 páginas ao trato generoso de operários musculosos, camponeses, favelados e miseráveis de toda a sorte. Ela vai além. Muito além. E com um solene desprezo por qualquer discussão teórica (afinal, mais uma preocupação aristocrática), sai no encalço dos seus preconceituosos adversários munida de revelações bombásticas e definitivas: o expressionismo abstrato, durante a guerra fria, foi usado pelos EUA como vitrina para a “exportação de uma imagem ‘aberta’ do mundo livre” (p. 3); o Museu de Arte Moderna de Nova York é o “tradicional braço direito do Departamento de Estado na área cultural” (p. 15); o “milagre” brasileiro propiciou “uma produção a cada dia mais esotérica e individualista” etc. etc. Tudo isto, é claro, sob a proteção de Nossa Senhora Aparecida, a quem a autora dedica o livro no final da introdução. Compreensível: ninguém é de ferro.

Curiosamente, no entanto, em nenhum momento Aracy Amaral coloca em questão aquele que deveria ser o primeiro de seus problemas a entrar em discussão: o que é o social na arte? Deixando de lado este aspecto espinhoso do debate, tudo pode ser resolvido pela simples atribuição de um valor positivo a certos temas, esses sim de cunho nitidamente social. A operação seguinte resume-se a identificar, por meio de argumentos de autoridade (como os apontados acima), as posições contrárias, seja em arte seja na crítica, com um direitismo elitista sempre às voltas com o próprio umbigo… sempre o pobre umbigo.

Ora, tanto o nazismo como o fascismo usaram e abusaram dos temas que desfilam pelas páginas de Arte para quê? — sem falar na propaganda de guerra americana e no stalinismo — e isso não os torna mais ou menos “sociais”. Simplesmente produziram uma arte de baixíssimo nível. Por outro lado, sem nunca ter pintado operários, Mondrian foi um dos artistas que foram mais longe no pensamento do social interiormente às artes plásticas.

O que o livro de Aracy Amaral, isto sim, demonstra é um profundo desprezo pela arte enquanto forma autônoma de pensamento. Em vez de investigar nas obras de arte o sentido social que elas produzem, ela parte de um conceito dado (e obscuro) e apenas verifica os artistas que se encaixam nos seus parâmetros. Dando continuidade a uma tradição antiintelectual que só se entende com um pseudomarxismo mecanicista (à página 3, somos comunicados de que “enquanto a arte não reencontrar sua função social, prosseguirá a serviço das classes dominantes, ou seja, daqueles que detêm o poder econômico e, portanto, político”), a autora considera a arte social como uma simples tradução visual de uma sociologia de fancaria. Tudo mais lhe é vedado, certamente em virtude de desvios elitistas, pois não se propõe a “conscientizar” o povo. Ao operário é preciso ensinar a fazer greve. Ao artista, o modo de entender a sociedade. Já se vê o progressismo dessa “teoria”.

Em nome do que seria uma sociedade mais justa, exige-se da arte que renuncie ao seu pensamento e à sua negatividade radical e à sua crítica para se transformar numa positividade que não faz mais que transmitir dogmas. Com esse triunfalismo retumbante deixa-se inclusive de ver qual concepção de sociedade está implícita em boa parte da “arte social” arrolada pela autora. Ao fazer quase exclusivamente um levantamento das discussões em torno da temática social em arte (o que em última análise foi uma discussão alimentada pelo Partido Comunista Brasileiro, com as louváveis exceções de Segall, Lívio Abramo, Mário Pedrosa e outros poucos), examinando de fora a produção artística desse período, Aracy Amaral não percebe que, paradoxalmente, a chamada arte política brasileira é estritamente intimista.

Ao contrário dos muralistas mexicanos — e a despeito de qualquer avaliação estética dos seus trabalhos —, a pintura social de um Portinari reivindica piedade e compaixão para com os pobres, ao invés de “mobilizá-los”. Imantada por uma afetividade exacerbada, um dos filhos diletos da má-consciência, a sociedade que se depreende da quase totalidade desses trabalhos constitui-se de uma trama mesquinha e familiar. Assim como a imagem que se criou de Portinari era um misto de bom selvagem (o eterno menino de Brodósqui) e justiceiro social (candidato a senador pelo PCB), também a imagem idealizada de sociedade que o realismo brasiIeiro forjou é pouco mais que uma utopia arcaica temperada com a mística da brejeirice nacional. Um outro umbigo — bem grande e mulato.

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Rodrigo Naves é crítico, historiador da arte e professor. Publicou El Greco (Brasiliense, 1985), Amilcar de Castro (Tangente, 1991), Nelson Felix (Cosac Naify, 1998), Goeldi (Cosac Naify, 1999), A forma difícil (2011) e A calma dos dias (2014), ambos pela Companhia das Letras, Van Gogh: A salvação pela pintura (Todavia, 2021), entre outros.

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Resenha publicada na Folha de S.Paulo em 6 de janeiro de 1985.

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Na imagem de destaque, Luiz Carlos Prestes feito por Portinari. 

 

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