* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

A literatura oral é importantíssima para construção de relações culturais entre nós. Fábulas são umas dessas formas de literatura bem interessantes e muitas chegaram até nós pela tradição da literatura oral. Essa expressão literária traz ensinamentos e reflexões que despertam o imaginário de pessoas ouvintes e desperta o pensamento crítico. Por isso, vou trazer uma fábula por aqui que vai me ajudar dessa vez na abordagem e na proposição da discussão do tema de diversidade & inclusão festejado no mês de junho e tão cara para a comunidade LGBT+.

A fábula de “João & Maria” é a que eu gosto mais. De autoria desconhecida passou por gerações de forma oral e publicada pela primeira vez pelos irmãos Grimm[1] no século XIX. A fábula narra a história sobre o abandono e superação que tem como protagonista um casal de irmãos que são desafiados à sobrevivência. Essa fábula tem várias personagens interessantes e cenas importantes. O mais atrativo não é apenas a jornada das crianças, mas o mundo que essas crianças vivem e como elas são vítimas desse contexto. É nessa direção que vou. Para isso a fábula precisa ser contada primeiro. Então, era uma vez…

Joao e Maria são filhos de um lenhador viúvo e que tem uma segunda esposa. A família vive em uma casa humilde e enfrenta uma crise econômica imensa que não consegue os alimentos básicos do dia a dia. Diante dessas dificuldades sérias a proposta da madrasta ao pai dos pequenos é que o casal de filhos fosse levado ao coração da floresta das redondezas que moravam e fossem deixados lá a própria sorte assim se livrariam de duas bocas incomodas para comer o escasso alimento. Persuasiva, a madrasta consegue convencer o pai a cometer o ato de crueldade. Atento, João, em uma determinada noite ouviu os planos da madrasta e guardou um punhado de pedrinhas brilhantes no bolso. No dia seguinte, o pai levou João e Maria para o meio da floresta. Ambos, espertos, conseguiram voltar para casa seguindo o caminho que foram deixando as pedrinhas brancas e brilhantes pelo chão. Ao cair a noite, com a luz da lua, as pedrinhas ficaram brilhantes e apontaram o caminho de volta do casal de irmão para casa. Ao chegar em casa e surpreender o pai e madrasta, que ficou furiosa com o retorno das crianças, contaram como conseguiram realizar o caminho de volta. Rapidamente a madrasta tomou e escondeu as pedrinhas milagrosas de João e Maria. No dia seguinte, o pai fez o mesmo ato de levar as crianças para o coração da floresta. Sem as pedrinhas dessa vez, João e Maria levaram um pedaço de pão que restava. Pelo caminho foram deixando migalhas do pão para marcar o caminho e conseguir voltar. Dessa vez o plano não deu certo. Pássaros famintos comeram as migalhas e os dois não conseguiram encontrar o caminho de volta para casa. Andaram por dias e noites perdidos pela densa floresta até que um dia, diante de uma clareira, encontraram uma cabana linda feita de doces. O telhado era feito de biscoitos, as paredes eram de chocolate e as maçanetas da porta de caramelos. Esfomeados e cansados, João e Maria partiram para cima da casa comendo todos os pedaços possíveis da construção. Quando estavam perto de estarem satisfeitos a porta da cabana se abriu e de dentro dela saiu uma senhora de aparência bem velha. Simpática a velha não repreendeu as crianças. Pelo contrário, ficou muito feliz de encontrar um casal delas em sua casa. A velha levou João e Maria para dentro, ofereceu um jantar maravilhoso, mesa farta e com comida quentinha. Tudo o que os irmãos jamais haviam provado na vida e também nos últimos dias perdidos na floresta. Além da comida, a velha ofereceu um quarto quentinho, com cama confortável para ambos. A simpática velhinha estava contente e queria tê-los por perto. Porém, não demorou muito para ela se revelar. Na mesma noite a velha retira João da cama e o prende em uma gaiola solitário e faz Maria de escrava forçando ao trabalho duro da casa. Uma das funções de Maria era levar muita comida para o irmão João preso na gaiola. O que os irmãos passaram a descobrir é que haviam caído nas garras de uma bruxa maldosa que devorava crianças. Um determinado dia, Maria escutou a bruxa falando sozinha que estava ansiosa para assar João. O plano maligno da bruxa era engordar João para fazer um assado de criança, o prato predileto da bruxa da floresta. Todos os dias Maria levava comida ao irmão na gaiola e atendia um pedido da velha bruxa que era apertar o braço de João, verificar se havia engordado e comunicar a ela o ganho de peso do garoto. A bruxa esperava o momento certo para devorar o garoto. Esperto mais uma vez, João guardou um osso da coxa do frango assado e quando Maria vinha verificar se tinha engordado ou não, ao invés de mostrar seu braço dava o osso da coxa do frango para se apalpada. A estratégia funcionou por um tempo até a bruxa desconfiar, verificar a mentira e constatar que João estava gordinho e pronto para ser assado. Rapidamente, começou a picar legumes e foi acender o forno. Quando se agachou para colocar mais lenha no forno em chamas, Maria se aproveitou e empurrou a bruxa para dentro do fogareiro a matando. Maria libertou João e fugiram. Bem alimentados por dias e fortes, conseguiram encontrar o caminho de volta para casa. Ao chegarem encontraram seu pai sozinho, deprimido e culpado pelo ato que havia feito com os filhos. A madrasta havia morrido de uma doença misteriosa e o pai estava livre da má companhia da esposa. Feliz com o retorno do casal de filhos, os três viveram feliz dali em diante.

Todo esse preâmbulo não foi à toa. As fábulas passam por gerações e vão ganhando versões e interpretações. Aqui tomo a liberdade de dar a minha: fazendo uma análise a partir dela no contexto da nossa comunidade LGBT+. Somos todes nós LGBT+ João e Maria nas mãos do mundo neoliberal?

Já faz alguns anos que o mês de junho é marcado pelo reforço do slogan da diversidade sexual. Porém, nos últimos tempos as bandeiras das diversidades LGBT+ nesse mês ganharam mais força na sociedade quando houve um início de pressão mercadológica sobre as empresas e companhias, a atração pelo chamado pink-money, para programas de gerenciamento de diversidade e inclusão. Dificilmente não nos deparamos nos dias de hoje com alguma empresa que diz estar investindo em programas de diversidade na sua cultura por um “mundo melhor”. A nossa diversidade de sexualidades então dá lucro. É entrar nas redes sociais, principalmente a do LinkedIn, se nota a proliferação de pessoas consultoras de diversidade, de cursos, de empresas propagandeando suas ações utilizando as bandeiras da comunidade LGBT+. O que cabe perguntar é para quem, como e para quais pessoas essas ações estão sendo feitas?[2]

O que não falta é organização, privada e pública, tampando o sol com a peneira para não passar o mês de junho sem fazer nenhuma ação chamada de Diversidade LGBT+ e ficar marcada no mercado. Rola de tudo. Desde tentar conseguir uma palestra com alguma pessoa LGBT+ para falar dos conceitos básicos das diferentes entre sexo biológico, gênero e orientação sexual até repostar matéria antiga de uma fala de alguma pessoa consultora na empresa para manter quente a rede social no mês. Há ainda aquelas organizações que celebram a diversidade, de pessoas LGBT+ e negras, posando com foto de lideranças brancas da instituição que nunca colaram nos grupos de discussão nos momentos mais quentes de conflitos de acusações de LGBT fobia ou racismo que funcionários enfrentaram. Tem aquelas ações ainda de reunir, rapidamente, as pessoas LGBT+ da empresa para uma foto segurando a bandeira do movimento para postar nas redes. Porém, no resto do ano a bandeira fica guardada em alguma gaveta do setor de RH e as pessoas LGBT+ não são lembradas para promoção, sofrem todos os tipos de assédio e são as primeiras a serem demitidas na crise da organização. Enfim, a tal diversidade fica no discurso das organizações.  Entretanto, a proposta de diversidade dessas organizações não aceita todos os discursos. Não adianta colocar no mesmo ambiente o colorido das bandeiras LGBT+ quando se censura os processos sócio-político-históricos dessas pessoas. O corpo LGBT+ vem com uma narrativa, mas nem todas as narrativas serão incluídas e o senso de pertencimento, tão caro a qualquer ser humano, não será desenvolvido.

O que vemos é a seleção de corpos LGBT+ para as fotos, ou seja, a representatividade da diversidade sexual na organização sempre favorece o homem branco cis-gay-heteronormativo que fala inglês fluente ou a mulher lésbica feminina e loira. Pessoas transexuais negras, periféricas, com discurso de justiça social afiado jamais. Mulher lésbica masculina não pega bem. Homem negro gay e afeminado nem pensar. Pode causar conflitos que não conseguiram ser resolvidos com a frase, irritantemente repetida sem pensar no mundo corporativo, que é a de “alinhamento de discurso”. E quando se fala de diversidade, inclusão e desenvolvimento de senso de pertencimento se está pensando quer alinhar discurso? Alinhar discurso é censurar e higienizar existências. A diversidade está bem longe disso. Um ambiente com senso de pertencimento tem que haver conflito de discursos, ideias se opondo, argumentos diferentes sendo criados. Diversidade rima com ambiente de criação. Ouvir várias vozes sem silenciar nenhuma rumo a construção coletiva de um bem comum é desafiador. Democracia dá trabalho. Claro que essa postura não resolve questões rapidamente. O mercado neoliberal é faminto por lucro, por produtos feitos rapidamente. Ter diversidade de indivíduos sócio-político-históricos localizados não orna com a exigência desse mercado. Então, a solução é docilizar os corpos, retomando Michel Foucault, para a “passabilidade”, agora, da organização diante da sociedade. O perigo está aí, pois no movimento da inclusão de pessoas LGBT+ o rebote, como um bumerangue, é o da exclusão e do mercado de consumo de corpos e narrativas LGBT+ que agradam os clientes de um mercado exigente por branquitude e heteronormatização. Nós viramos presas fáceis no modo de operação neoliberal para um junho pride.

Retomando “João & Maria”. É essa lógica que vivemos na sociedade: a do abuso das nossas pautas. A comunidade LGBT+ por muito tempo foi marginalizada, pois o poder (institucional e do senso comum da sociedade) não nos reconhecia e não queria dividir o pão conosco. Maltratados, fomos, por muitas vezes, abandonados como João e Maria no meio do nada da floresta. Nós, por anos, tivemos que construir estratégias de sobrevivência na mata densa para encontrar um caminho. E não foram poucas estratégias dentro das políticas de morte ou da necropolítica, recorrendo a Achille Mbembe, como arapucas para nós. Não demora muito e nos vem essa sedução da “casa de doces” que foi construída para nos atrair como um lugar que seriamos bem tratados, incluídos e entendidos. Armadilha! Sempre há a bruxa a espreita que vai tentar dar o alimento com a intenção de consumir nossos corpos e depois descartar os ossos. A ilusão de que organizações estão fazendo diversidade e inclusão é só o truque da casa de doces da bruxa neoliberal que vai consumir cada um de nós. E nem todos ainda serão úteis para o consumo, nem todos os corpos estarão no peso certo para serem assados, nem todos serviram para o neoliberalismo. As empresas vão lucrar usando pouco de nós. Lucram, inclusive, a partir do ódio que se fecha contra nós. Quem não lembra de qualquer empresa que bota uma propaganda com casais LGBT+, causa polêmica na sociedade e na semana fatura milhões em vendas dos seus produtos? O que isso é revertido em inclusão real nossa em postos de poder, que sim, passam a legislar efetivamente em favor de políticas para nossa comunidade?

A fábula de João e Maria LGBT+ não acaba por aí. Nós, pessoas LGBT+, temos que nos unir assim como os irmãos se juntam em um plano para enganar e escapar da casa da bruxa e voltar as nossas origens dos nossos propósitos. Querem nossas imagens, nossos corpos, nossas mentes? Pois que passem a realmente ouvir pessoas das nossas comunidades, que paguem salários dignos, que promovam ações verdadeiramente inclusivas de narrativas com o desenvolvimento do senso de pertencimento. Pois, caso contrário, só vamos assistir ao desenho animado para criança ver, em uma repetição infinita da mesma cena, de um João e Maria encantados pela falsa casa de doces e capturados por uma velha bruxa sedenta por carne marginalizada. Sou a favor da frase de Quincy Jones na década de 40, “Nenhuma gota da minha dignidade vale sua aceitação”, como ponto de partida da saída da nossa fábula de João & Maria LGBT+. Não podemos nos perder por uma casa de doces que nos atrai para consumir. Não buscamos aceitação, pois remete a uma hierarquia do mundo heterossexual sobre nós, mas respeito por cada uma das nossas existências.

[1] Jacob (1785-1863) e Wilheml (1786-1859) foram dois irmãos, acadêmicos, da região Hesse-Darmstadt (atual Alemanha) que realizaram um compilado e publicaram em livros diversas fábulas infantis.

[2] No evento DIVERSES – DIVERSIDADE & INCLUSÃO NAS ORGANIZAÇÕES coordenado e organizado por mim e por outras pessoas LGBT+ ou não consultoras e especialistas em Diversidade & Inclusão em 2021 faço o desenvolvimento desses três questionamentos estruturantes sobre a pauta diversidade & inclusão nas organizações. O simpósio está disponível no link do canal “Laboratório de Estudos do Mundo”: https://www.youtube.com/watch?v=BWlnLMxP1HY

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor e doutor em teoria literária da Université Bretagne Occidental, Brest, França. danielmanzoni@gmail.com

 

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