
Cap II
A Cidade faz barulho. É uma letra maiúscula. É uma Filha da Puta.
Eu, porteiro velho aposentado, aguento rareado a sustentação de um prédio inteiro, e o Edifício Fabuloso me conhece no âmago. Encerrado nas minhas funções de porteiro por conta da idade, acordamos a minha troca de zelador e morador por apenas a de morador. Consentimento forçoso que tive que fazer. Se os seus olhos estão aqui me lendo, é provável que o meu corpo não esteja mais por aí no mundo. Talvez eu habite um lugar comum sob a terra. Conto do que vi até minha ânsia sarar. Cheiro a loção pós-barba e fedo como os velhos fedem. Lembro que eu fungava, molecote, velhos magricelas de pele e osso; cheiro próprio, dava barato. Acabei me tornando um pele e osso, mas em minha defesa, ou em meu escárnio, um pele e osso letrado, letrado demais.
Memórias alheias não costumam ser interessantes, cumprindo o seu papel. O homem tem mania de perpetuar coisas desinteressantes, vide os cartórios e os blockbusters. Vide as missas e as promessas. Vide os vigias e as portas de estabelecimentos 24 horas. Estamos num estado de cinismo que não incomoda, se não regrar nada. Fora desses papéis – páginas e páginas de lamentos rebuscados da minha história meio medíocre, meio fantástica – há vida. E a vida aceita todo tipo de gente. Parece puteiro sujo com ala VIP com uma capela nos fundos. Puteiros são caros. Capelas são mais.
A princípio vou me pincelar para não me rebuscar, sou um calhado. Não simplório a ser burro, nem clássico a ser conservador.
Agora, nos meus oitenta anos, os acontecimentos estão perenizados. A memória recente é mais honesta. Mas e a memória antiga? É memória da memória. Um privilégio eu poder contá-las, não um desloque Machadiano entre as ruas cariocas do Brás Cubas no capítulo sobre o delírio, muito menos um gado do Orwell sofrendo na Fazenda Modelo do Chico.
Lúcido sobre suas mãos, sou um encaixe, como creio. O meu próprio divisor, tal qual o novo testamento em contraposição ao antigo, só que sem perfeições, sem santos, sem jesus, sem diabo, sem maniqueísmo. E nada disso merece a propriedade das letras maiúsculas.
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Depois Que as Luzes Se Apagam conta sobre um homem falido, mas que recupera sua habilidade de sonhar. É a história do encontro entre um porteiro, velho artista de circo, e um morador, um menino debilitado. Só uma narrativa assim, sobre respeito e amizade, sobre recuperar o que se perdeu. Em nossa literatura contemporânea, é raro ler sobre picadeiro, malabarismo, a esperança equilibrista. É isso. Voltem a acender as luzes, por favor. Este livro é uma esperança equilibrista. (Editora Nós, 128 págs.)