* Por Hugo Almeida *

 

Cântico dos cânticos

Quântico dos quânticos

 

Sei que a arte é irmã da ciência

 

“Quanta”, Gilberto Gil

Um poema não é apenas a expressão lírica ou trágica, bela ou assustadora do que o poeta sente, vê ou imagina. Grandes poetas e leitores experientes sabem que há um clarão misterioso escondido nos versos (também na prosa) e, ainda assim, lógico. Todo texto literário tem várias camadas, é um palimpsesto. Essas observações vêm a propósito de Câmara escuro (Hedra, 2022), o novo livro de Moacir Amâncio, de certa forma um contraponto de A câmara clara (1980), de Roland Barthes (1915-1980), ensaio sobre a fotografia (etimologicamente, escrita de luz), registro do instante. Pessoas, objetos, paisagem – o que foi retratado – “estiveram lá”, lembra o escritor francês. Já um poema traz o presente, tudo está lá, mas para isso é preciso saber descobrir e ver. Ninguém pode negar que ali pode residir o elo entre poesia e ciência. Elo quântico, eloquência pouco desfrutada.

Um dos mais consistentes e originais poetas em atividade no Brasil e professor titular de Literatura Hebraica na USP, Moacir Amâncio [Pinhal, hoje Espírito Santo do Pinhal, SP, 1949; vive em São Paulo] tem quase quinze volumes de poemas publicados, oito deles reunidos na coletânea Ata (Record, 2007). Amâncio publicou também ficção, ensaios e traduções, como do Talmud (Iluminuras, 1992 e reedição em 1995). Seu olhar concentra-se sobretudo no fazer poético, talento reforçado por vasta cultura, o que é próprio nos grandes escritores. No posfácio do Talmud, Amâncio cita Harold Bloom: “religião é poesia que transborda”. No mais recente livro de poemas, Câmara escuro, o poeta se esmera na concisão dos versos, em poemas curtos (“Corvo na pele” é exceção) e mergulha ainda mais em elementos à primeira vista não poéticos, união de arte e ciência.

“Ver! Levar o invisível ao visível!”, lembra Monique Sicard em A fábrica do olhar (Lisboa: Edições 70, 2006, tradução de Pedro Elói Duarte). “Os sistemas técnicos de observação, bem como os de produção de imagens que lhes estão associados estruturam os saberes e dirigem os imaginários”, afirma em seu livro de ensaios premiado na França a pesquisadora no CNRS (Centre National de Recherche Scientifique). Monique Sicard sublinha as conexões entre os aparelhos de visão e seus efeitos de conhecimento: “Só assim talvez comecemos – finalmente! – a observar”. Ela destaca, entre outros, o labor (o “apalpar no escuro”) de Bernard Palissy (1510-1589). “Pela criação de artifícios, Palissy mostra-se artista; pela produção de conhecimento, é cientista.” Ela exemplifica: “Palissy é artista quando constrói grutas de esmalte ricamente coloridas. É cientista quando instala novos esquemas do ciclo da água. É artífice quando tem de produzir em série vitrais coloridos para catedrais”.

Monique liga a história das ideias à dos instrumentos. O microscópio e o telescópio foram inventados no início do século XVII: “Brutalmente, mergulha-nos num mundo buliçoso, inesperado”. No início, o telescópio desperta mais interesse do que o microscópio. De olho nos astros, o homem sonda o infinito. Somente mais tarde atenta para os mistérios escondidos na Terra, na matéria palpável. Com a união da fotografia com o microscópio, “instala-se assim uma nova ordem do olhar. Não mais fechada, mas, pelo contrário, aberta”. A foto não transmite o movimento, mas o instante, como escreveu Roland Barthes em A câmara clara. “As especulações teóricas e os resultados científicos desde sempre se amalgamaram com a arte, muitas vezes a precederam; e os artistas mais importantes não foram os que perante elas recusaram”, lembra Theodor Adorno em Teoria estética, de 1970 (tradução de Artur Morão para Edições 70, Lisboa; p. 371 da edição, s/d, da Martins Fontes, de São Paulo).  Já há aqui elementos de sobra para uma leitura mais proveitosa de Câmara escuro.

No entanto, é preciso ainda lembrar outra marca de Moacir Amâncio. Sua poesia é multilíngue, destaca Berta Waldman, em “Poesia nômade”, substancioso prefácio de Ata. Amâncio escreve poemas não somente em português, mas também em inglês, espanhol e hebraico (“línguas de reterritorialização cultural”). O poeta traduziu para o português o poema em hebraico (p. 69) presente em Câmara escuro. Roberto Zular afirma na apresentação dos poemas que “às vezes precisamos baixar os olhos para ver, precisamos de pequenos deslocamentos para achar um outro modo e estarmos onde estamos”. E arremata: “Um livro em tempos sombrios que faz das sombras um mote para redimensionar o caminho da iluminação”.

Alguns exemplos desses poemas de mergulho no escuro em busca de luz: “pássaro/ num clarão/ solúvel // o olho / em prismas/ fere a rocha” (p. 15); “na produção/ de cores/ a/ falha/ do cristal” (poema-título do livro, p. 20); “ouro avesso/ cada mão/ um cipreste// quando o fogo” (p. 35); “pela escala/ do olhar// ascende/ à chama// que ao/ brilho// se vela” (p. 37); “a romã menos redondos/ em vermelhos com castanhos// – lua fechada em luz/ brilho/ sementes a tua voz” (p. 46); “a luz/ persiste no seu fora/ chuva retida/ a pérola” (p. 50); “visibilidade de um ouro/ ao cair desespelha-se/ a sílaba// espalha o plural em transparência” (p. 55); “a nuvem a neblina/ em sua escrita reescrita// ousadíssima centopeia” (p. 71); “A estrutura de luz/ em aço se coloca// pronta dentro/ nela própria// gelo fixa labareda / conforme” (p. 78). Como respiro, aragem no seio de poemas tão densos, há outros como este: “entras nesta sala/ e tudo inundas// o mar começa em teus pés// são de água/ esses teus passos” (p. 59). E o também caudaloso e belíssimo “Corvo na pele” (p. 64-68). Cada leitor encontrará em Câmara escuro outros poemas de intensa luz oculta.

Contudo, não é apenas em seu último livro que Moacir Amâncio trabalha a poesia quântica. Ela está presente em vários volumes anteriores, como se pode constatar nos exemplos a seguir. “Como o raio/ abre rios no céu/ lavras um campo avaro// o papel com tua escrita// colheita de relâmpagos” (Do objeto útil, 1992); “Bajo el agua sigue/ ese toro líquido// como la luz navega,/ dentro de la piedra/ hasta que/ cenit// Bajo el agua – fijo –/ brillante carbón” (Colores siguientes, 1999); “you cannot see, but can take/ the transparency/ in your hands// after it, / put the crystal/ in a straight/ line/ between the/ sun/ and your/ eyes// to see/ other/ sides/ of / the moon” (Óbvio, 2005); “um bloco de sal/ guarda todo o mar// em cada grão jaz// algum claro de alga// pronto a iluminar/ por dentro da luz” (Matula, 2016). Em todos os livros de Moacir Amâncio, a expressão de um grande poeta que sempre fez alta literatura e merece mais atenção do leitor.

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Hugo Almeida (1952), escritor mineiro residente em São Paulo, doutor em Literatura Brasileira pela USP, é autor de mais de dez livros de ficção. Certos casais (Laranja Original, 2021), contos, é o mais recente. Organizou a coletânea de contos Feliz aniversário, Clarice (Autêntica, 2020). Tem inédito o romance Vale das ameixas.

Foto: Cristóvão Tezza

 

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