*Por Caco Belmonte*

Rato de biblioteca, enciclopédia ambulante. Antes da internet, assim eram chamadas as pessoas que cultivavam o louvável hábito da leitura diária e, por meio desse conhecimento acumulado, desenvolviam uma atividade mental elástica, capaz de fazer associações entre fatos, ligar personagens reais de eventos distantes no tempo e no espaço. Produziam de cabeça aquilo que os jovens de hoje não fazem sem o auxílio das ferramentas de busca, ou Inteligência Artificial.

            Naquela época, se uma dessas pessoas que cultivasse o apreciável vício da leitura, também fosse capaz de escrever de forma fluída, clara, objetiva e literária, possivelmente estaríamos falando de um cronista habilidoso. É o caso de Lúcio Humberto Saretta. Aos 52 anos, o autor publicou a sua mais recente obra no gênero. O livro foi lançado pela Editora Folhas de Relva. “O beijo na lona – Crônicas de craques e crepúsculos”, reúne 32 textos breves que vão fundo.

            No Brasil, a crônica já esteve mais prestigiada. O gênero possui uma relação estreita com a temporalidade, expressa em sua etimologia, pois a palavra crônica tem origem em Chronos, palavra de origem grega que, na mitologia, era o deus que personificava o tempo. É enorme a lista dos nossos maiores cronistas, desde o século XIX, embora atualmente não haja tantos nomes que possamos comparar àqueles vultos consagrados. Saretta, ao contrário, nos remete à velha tradição da boa crônica brasileira. E poderia escrever em qualquer grande jornal diário do país.

            Até o início do século XIX, a crônica funcionava como relato histórico, e o destaque era dado aos colonizadores. No Brasil, o termo passou a funcionar de outra maneira: as palavras crônica e cronista foram atreladas ao gênero, estritamente ligado ao jornalismo. O primeiro cronista como hoje conhecemos, identificado por estudiosos do gênero, teria sido Francisco Otaviano de Almeida Rosa. Escreveu no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, 1852. Outro que marcou época foi José de Alencar, apontado como o homem que consolidou o gênero nas páginas dos jornais, a partir de 1854. Machado de Assis, na tentativa irônica de esclarecer aos leitores sobre a origem da crônica, escreveu em 1877: “Não posso dizer em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia”.

            Inicialmente, não era das melhores a relação entre a crônica e o esporte, sobretudo o futebol, considerado “coisa de estrangeiro praticada pela alta sociedade”. Com a entrada de homens das letras no mundo da crônica esportiva, o flamenguista José Lins do Rego é um dos exemplos, a crônica passou a ter um papel importante na criação do imaginário popular sobre a bola e os gramados. Gilberto Freyre escreveu a introdução do livro “O negro no Futebol Brasileiro”, de Mário Filho, cujo irmão Nelson Rodrigues também se debruçou sobre o tema.

            O próprio Freyre, em 1938, no Diário de Pernambuco, publicou um artigo intitulado “Foot-Ball Mulato”, celebrando o desempenho dos atletas brasileiros no mundial de seleções da França. Roberto DaMatta é outro intelectual que publicou sobre o tema, associando futebol e política. “O conhecimento da alma humana passar por um campo de futebol”, frase de Albert Camus, escritor, filósofo, romancista, dramaturgo, jornalista e ensaísta franco-argelino.

            Para o poeta João Cabral de Melo Neto, a relação com o esporte foi diferente, ele próprio um ex-jogador no Recife, campeão aos 15 anos pelo juvenil do Santa Cruz. Alguns escritores, entretanto, cometeram equívocos ao fazer previsões sobre o futebol. Graciliano Ramos, em 1921, prognosticou que o esporte no Brasil nunca iria consolidar-se. Apesar disso, anos depois, poemas e crônicas de Carlos Drummond de Andrade foram inspirados pelo esporte.

            Sérgio Porto e Armando Nogueira são exemplos de jornalistas literatos que se debruçaram sobre o futebol. Com a profissionalização da crônica esportiva, Nogueira virou referência como um dos primeiros escritores a ser reconhecido no meio literário, redigindo exclusivamente sobre esportes. Oswald de Andrade, Mário Prata, Ruy Castro, Mario de Andrade, Stanislaw Ponte Preta, Vinícius de Moraes, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, entre outros, escreveram sobre o assunto.

            Notório torcedor do Sport Club Internacional, gaúcho e colorado como Saretta, Luis Fernando Verissimo é um dos grandes cronistas brasileiros contemporâneos que dedicou uma pequena parte da sua produção literária ao futebol. LFV esteve em várias coberturas de Copas do Mundo, sendo a primeira pela revista Playboy. Também viajou aos mundiais de seleções como integrante das equipes dos jornais Zero Hora, Jornal do Brasil e O Globo.

            Embora não seja jornalista de formação, o que o autor Lúcio Humberto Saretta nos entrega são crônicas que conversam com o melhor do jornalismo literário. Algumas das narrativas do livro foram construídas a partir de entrevistas com as personagens retratadas. Nelas, além das ferramentas comuns a todos os repórteres, caneta, bloco de notas e gravador portátil, Saretta utiliza com destreza invejável as técnicas da escrita ficcional. Daí porque o resultado difere muito daquelas crônicas publicadas em livros que apenas empilham informações sobre esporte e desportistas. 

            E qual é, afinal, a matéria-prima que serve ao autor de “O beijo na lona”? A julgar pela capa da obra e o título, também por tudo o que escrevi, haverá quem arrisque afirmar que é o esporte. E não estará totalmente errado, mas o livro vai além das informações sobre pessoas, acontecimentos específicos, efemérides e grandes feitos esportivos. São crônicas impecáveis que nos proporcionam leitura fluída e agradável, apesar da densidade dos temas que o autor escolheu esmiuçar, trabalhando muito bem nas entrelinhas, quando avança por terrenos existenciais que dialogam com as angústias e incertezas experimentadas por todos em nossa época.   

          “O beijo na lona – Crônicas de craques e crepúsculos” é uma obra que trabalha muito bem os contrastes, quando fala de esportistas que tiveram grande sucesso e vitórias, mas depois caíram no ostracismo, alguns inclusive morreram na miséria ou tragicamente. Saretta é um contador de histórias verdadeiras. Suas crônicas são atemporais. Não é um livro exclusivamente sobre esporte, embora seja o ponto de partida para o autor construir grandes painéis que nos remetem a um panorama bem mais amplo. E mesmo quando ele escreve sobre futebol ou boxe, beisebol, basquete, não produz crônicas deslumbradas. No texto de Saretta há consciência crítica e social inserida, sem cair na tentação do discurso panfletário. Saretta é um painelista, em alguns momentos conduz a atenção dos leitores com a mesma habilidade do diretor de cinema bem-sucedido. Com uma “escrita visual”, ele parte do esporte para trazer aos leitores uma leitura de mundo muito maior e mais complexa.

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Caco Belmonte, jornalista e escritor