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Por Luciano André *

Lá vai, de novo, aquele homem, descendo as escadas, correndo. Chega à calçada e se lembra de que se esqueceu, mais uma vez, de dar um beijo na namorada antes de sair. Está sempre correndo. Está sempre atrasado. O cadarço do sapato, mal amarrado, vai se soltar na próxima esquina. Veste uma camiseta velha que foi usada no fim de semana. Seus cabelos estão molhados. Tateia dentro da bolsa à procura dos óculos escuros. Desce a rua, correndo. Sobe a ladeira, cansado. Chega ao metrô, suado. Procura o relógio. Desvia do povo. Apenas constata que está atrasado. Se joga no trem. Entra empurrando. Não tem mais educação. Por um momento, não é mais humano. Virou gado. Vai passar os próximos 35 minutos se equilibrando em um vagão lotado. Se segura como pode. Empurra novamente. Novamente, é empurrado. Acha ruim. Ninguém liga. Tateia o livro dentro da bolsa. Os dois últimos capítulos. Não tem tempo. Não tem ânimo. Coloca os fones no ouvido. Ouve música, mas não ouve a música. Salta do trem. Sobe as escadas. Vai tomar, em pé, seu café apressado. Vai queimar a língua. Vai sair mastigando o pão e a fumaça pela rua, correndo, sempre. Não quer perder o ônibus. Impaciente, espera. Não pode ficar parado. O ônibus chega. Lotado. Não tem acento vago. Cinquenta minutos. Apertado. O livro ainda está esperando. O livro morreu. Fica pensando. Ele só consegue se lembrar de que tem que descer do ônibus correndo. Porque?  Já não sabe. Observa a rua. Observa as pessoas. Não vê nada. Precisa correr. Passa pelo velhinho da banca. Nem bom dia dá mais. Não tem tempo. Não se importa com ninguém. Não pode. Precisa ir. É preciso ir. Sempre. Correndo.  E, assim, ele vai. O homem que, todos os dias, deixa sua alma em casa. Ontem a noite, ele chegou cansado. Tomou banho, comeu, se deitou, e nem percebeu que ela tinha ficado alí, no canto, esperando desde manhã…

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Luciano André é redator de publicidade; escreve o blog https://ocontrafato.wordpress.com/