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Por Viviane Ka *

O gosto pelo bizarro, tão caro ao autor Ricardo Bellissimo não deixa de estar presente em seu último livro, Sangrantes. Sua primeira novela, Libido Siamesa (Editora Livro Aberto, 1998), que ganhou prêmio de melhor livro no Festival de Literatura Universitária RS, já tratava da relação bisonha das irmãs siameses com desejos sexuais opostos que precisam conviver no mesmo corpo. Em seu último trabalho, Negro amor, uma legista disseca o coração de um vivo para dele arrancar os mistérios e particularidades deformadas de um caráter numa espécie de fábulas às avessas. O universo do amor obscuro e os labirintos do desejo é o que move sua escrita.

Em Sangrantes, uma tesoura enfiada no peito pela amada é o estopim da jornada de Josuel por estradas tortuosas que o levarão a paisagens e encontros surreais.

A linguagem para esse drama de amor é irônica, muito bem talhada nas veias da tragicomédia.

O texto tem várias camadas de percepção. Pode ser lido apena como uma história de separação e reencontro de um casal em várias dimensões da existência ou pode dar margens a interpretações filosóficas sobre incomunicabilidade entre os seres humanos. Essa incomunicabilidade está bem representada pelo silêncio meditabundo de Josuel, que remete ao conto de Nelson Rodrigues, O marido silencioso: o silêncio do marido boca-de-siri provoca o desespero na mulher casada e seu consequente enforcamento. Amor sem imaginação asfixia. Não há enforcamentos em Sangrantes, mas o compartilhamento de um grito mudo de impossibilidades que vai contaminando a tudo e a todos.  E sexo, muito sexo. Essa é a comunicação inevitável entre os corpos que se relacionam.

Tanto silêncio entre o casal faz com que a mulher de Josuel fale com ventos e tempestades.  Falta de comunicação provoca mal estar, loucura e dissabor. Parece que o amor tem que dizer, falar e proclamar para ser sentido. Por isso ela escreve um diário e nele desabafa todas as suas loucuras de amor. Que inclui fincar uma tesoura no peito do marido. De coração partido, Josuel viaja rumo ao desconhecido, assustado com a fúria feminina.

A incomunicabilidade também passeia pelo relacionamento de Josuel com a caronista que encontra na estrada que o leva a uma rústica aldeia de pescadores. São seres perdidos no limbo do amor. A simples presença fantasmagórica dele faz com que os habitantes da aldeia da praia o considerem uma reencarnação de um canibal. Josuel continua fugindo, embrenhando-se em florestas e termina por encontrar seus primórdios selvagens nos braços de uma indígena que não fala nada. Essa estadia com a indígena é hilariante. Entre sortilégios, macumbas, bebedeiras, Josuel encontra a si mesmo enquanto come jaguatirica assada, preparada pela mulher primitiva que só entende a linguagem do corpo.

O amor o consome em autofagia, mas sexo não segura um relacionamento. Eis que o homem civilizado volta pelo mesmo caminho que o levou embora, de volta ao ser amado que pulsa no coração da noite, plâncton flutuante na noite estrelada em forma espiritual, carnal e total, sem distinção e críticas. O amor enfim, pode unir as duas metades em completude, o tao.

Como diz Saramago: O que dá o verdadeiro sentido ao encontro é a busca e é preciso andar muito para alcançar o que está perto.

Sangrantes é uma leitura divertida, carregada de simbologias, teorias baseadas em física quântica, como moléculas em ondas que ligam pensamentos das pessoas distantes. O texto não deixa de ser permeado de muito bom humor. É o grande absurdo do existir.

Sangrantes (capa 100dpi)

Sangrantes (Via lettera, 166 págs.), de Ricardo Bellissimo

Avaliação: ótimo

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Viviane Ka é escritora, roteirista de cinema e editora da SPR