
*Por Alexandre Brandão*
O oboé o alcançou por caminhos tortos. Como não é raro, o pai o queria engenheiro, a mãe, médico. A mulher que fisgou o adolescente de primeiras escapadas noturnas disse-lhe bem assim: seus dedos são de oboísta. Sem entender a metáfora, se é que era uma, visitou a mulher naquela noite e em muitas outras. Tornaram-se amantes. Quer dizer, para ela eram amantes. Para ele era uma mulher experiente com quem saía. Ou não saía, pois ficavam a maior parte do tempo presos ao conjugado em que ela vivia no Catete.
Não demorou muito para ele perguntar que história era aquela de oboísta. Que porra é esta? A mulher, Elisa, seu nome, o fez escutar “Der Wanderer”, música de Schubert, com solo do francês Fabien Thouand. E Nino, nome dele, quer dizer, apelido, saiu de si. O oboé falava por ele. Ela sentiu o desmanche do seu jovem amante. Soube também que seria circunstancial, um bate e volta ao fim do mundo. Assim mesmo, tentou tirá-lo daquele estado, arrastá-lo à cama a dois passos de onde estavam no cômodo pequeno, mas Nino não conseguiu se mover.
O oboísta tomou conta do palco. A família sofreu o golpe. O pai ameaçou. A mãe lamentou. Há de se dizer que a avó paterna de Nino havia sido musicista, uma pianista de triste memória. Solista em grandes orquestras, acabou se apaixonando por um maestro italiano e abandonou marido e filho, mudando-se para Roma. A música transformou-se num trauma familiar. Apesar disso, Nino, desde muito cedo, mostrou-se musical. Restrito aos acordes básicos, mas cheio de ritmo e personalidade interpretativa, tocava violão. Você que é mãe tira isso dele. Ah, as dores de um filho desamparado!
Nino não tinha dinheiro nem para comprar o instrumento, nem para bancar os estudos. Quando o assunto surgiu, o pai foi inflexível, nem morto contribuiria com aquilo. A mãe, fiel depositária da felicidade do filho, contornou a situação. Com dinheiro de sua poupança, comprou um oboé de segunda mão. Matriculou-o num professor relativamente barato e de bom currículo. Nino se achou. Estudava horas e horas. Saía pouco – para ver Elisa, enquanto esteve com ela. Percorreu o mundo da música clássica escalando montanhas, nadando em mares traiçoeiros, beirando a morte. É verdade que, à medida que construía seu círculo de amizade entre músicos, aquela dedicação obsessiva ganhou um pingo de leveza. Foi por onde entrou o chorinho. O pessoal das várias orquestras pelas quais tocou – desde a de jovens talentos até a do Municipal, onde, concursado, passou a ser uma certeza, não uma aposta – gostava de, depois dos ensaios e mesmo dos concertos, procurar um cantinho com boa música e cerveja. Os austeros músicos clássicos se acabavam no samba e se encantavam com o chorinho. Não foi diferente com Nino.
Sobre o pai, que afinal se curvou ao engenho do filho, pairava a nuvem da insegurança. E se uma maestrina se apaixonasse pelo menino e o levasse para Roma, Budapeste, Seul, Tóquio? A mãe o apaziguava. Ora, a gente vai visitar nosso garoto. Um jovem seguir seu rumo, longe ou perto de casa, era o natural. Filhos não abandonam os pais.
Elisa, Elisa, Elisa! Mulher de amores, casamentos, separações, de ser a primeira, de ser a outra, de experimentar carícias homoafetivas, de chutar o balde e viver uns tempos no mato. Artista plástica, dedicada à indústria do livro, conseguia viver sem as amarras de um emprego fixo. Sofria nas entressafras, mas, organizada, com pequenos sacrifícios equilibrava as finanças. Muitas amigas a invejavam, outras achavam que lhe faltava um amor constante. Mas Elisa teve vários desses que ela dizia, roubando Vinícius, terem sido eternos enquanto duraram. Não era exatamente uma caçadora, mas dormia sozinha só quando queria – e quase sempre queria. Uns iam e vinham, e, quando não se interessava por eles, não encontrava dificuldades em garimpar um moço ou uma moça na rua. Foi o caso de Nino. Jovem demais – o campo de interesse dela eram pessoas maduras, calejadas –, mas tão bonito. Uma beleza da qual ele não tinha consciência. Uma beleza virginal. Elisa se aproximou dele e puxou assunto. Trocaram ideias e, em seguida, beijos. Bonito e de beijo bom. Levou-o para casa, onde descobriu um menino louco para ser homem. Poderia ter dito que os dedos dele eram de pianista, pandeirista, fisioterapeuta, mas fez alusão ao oboé, instrumento que, por acalmá-la, era sua pílula daqueles dias.
Bebês são fofos, chorões, risonhos, cagões, dorminhocos, insones, gordos, magros, glutões, inapetentes, e o bebê Nino foi fofo, risonho, dorminhoco, magro, embora glutão, e mais alguma coisa indefinível, próxima da tristeza e imperceptível. Ele se lembrava dos tempos de seios e berço, de ser ninado sem música, de se lambuzar com a sopa de abóbora. Uma lembrança baça, feita de vultos e cenas obscuras, até melancólicas.
A estranheza não o impediu de ter amigos, de brincar, de rir, era algo do seu íntimo e parte do corpo permanentemente coberta. Um poeta lhe diria um ser de alma triste. Outros garantiriam que aquele estado era bom, uma dádiva divina. Nino não achava tanto, mas, em sua particular existência, convivia bem com aquilo. Foi o oboé, portanto Elisa, quem lhe deu consciência de tudo. Aquela audição de Schubert, pelos dedos (o instrumento ficou mais ligado à mão que à boca e à respiração) do músico francês, foi o divisor de águas, rearranjando a imagem gasta, de lágrimas. Naquele dia, Nino chorou e, abraçado por Elisa, chegou a soluçar. Depois as lágrimas secaram, e a umidade visitou outras partes dos corpos de um e de outro.
Ao começar os estudos do instrumento, o desejo de Nino era reviver aquele instante no cubículo do Catete. Não, não conseguiu. Faltavam os outros elementos: tudo que emanava de Elisa e o medo reincidente e passageiro que sentia ao se deitar com ela. Mesmo assim, o oboé o levava bem próximo da plenitude e o fazia manter a esperança de reviver aquele momento mágico da primeira audição de Schubert. Um amigo lhe disse que voltava às drogas com a intenção de sentir a energia das primeiras vezes. Nino era um viciado.
Elisa saiu da vida de Nino porque sempre saía da vida de seus casos. Aos poucos descobriu que sua liberdade – sem casamento, sem emprego fixo, sem fidelidade a uma preferência sexual – a fazia avançar aos trambolhões dias adentro, velhice afora. Viu florar e frutificar o menino lindo, não carecia de vê-lo apodrecer. Nem teria paciência para isso. Os jovens têm dissabores pelos quais Elisa não se interessa. Prefere os homens derrotados, os cafajestes de boa ou má índole. Prefere as mulheres que convivem com a decadência corporal – feito ela – sem desmoronarem. Não foi fácil deixar seu Nino. Não foi fácil fechar-lhe a porta. Não foi fácil aparecer com outro cara. Mas era preciso, simplesmente porque a sua existência a empurrava para esse lugar. Não se tornaram inimigos, longe disso. Elisa ia aos concertos em que ele tocava, vez ou outra o acompanhava numa roda de choro – como aquele concentrado oboísta de Schubert podia ser o mesmo moleque soprando Pixinguinha? –, mas nunca mais foram para a cama juntos. Saudades ela sentia. E ele, bem, ele quase morria. O tempo tratou de esfriar os ânimos. Nino começou a namorar uma menina linda, tão linda quanto ele, branca, branquíssima, e sorridente. Tinham diferenças marcantes, mas não foi o encontro de opostos, o alegre e o triste, o positivo e o negativo, o solar e o lunar; não, nada disso. Um rapaz inquieto se encontrou com uma moça jovem, cheia de sonhos – o que não é tão comum quanto parece – e de personalidade firme. Vou fazer, ela dizia, e saía para fazer.
Nino adorava passar os dedos pela pele alva de Susi, enquanto acompanhava atento aquele movimento. Era possível ver as veias finas e azuis e até mesmo o sangue fluindo por dentro delas, quente e espesso. Ele pensava que o nu da namorada se expunha em uma segunda camada. Talvez pudesse ver o coração pulsante de Susi. Ou seu útero guloso. Bastava treinar. Assim como treinou os dedos, a boca, o corpo todo para tirar o som esquecido nos oboés. Pois o som estava lá, bastava soprá-lo. E dedilhá-lo. Ninguém toca oboé sem os dedos. Ninguém poderia amar Susi sem os dedos, que subiam assim desde o emaranhado dos pés até o descampado da testa, passando pelo planalto da perna, pela montanha do joelho, pela planície da barriga, pelos seios, esses que não se pareciam com nada na natureza. Não comparem a pera, a montículos, os seios são sem paralelo.
Susi foi quem notou pela primeira vez aquela penumbra em Nino. Não foi num momento de intimidade, nem em algum no qual ele estivesse isolado, triste, algo assim. Ela se deu conta quando dançavam um samba. Tudo nele cintilava, menos o olhar. Você tem um olhar tão... Não encontrou a palavra, mas o fato é que, sem resolver o enigma, o revelou.
Susi também não ficou muito. Mulher de sonhos e de correr atrás deles, foi trabalhar em uma organização que atuava em regiões de extrema pobreza na África, onde era grande o número de pessoas infectadas pelo vírus da AIDS. Ela e Nino nunca deixaram de trocar mensagens, de saber um do outro.
A orquestra prepara um concerto em que mesclará obras clássicas e populares. É uma forma de atingir um público maior, coisa que de quando em quando acontece. A apresentação será, ao lado do Zoo, na Quinta da Boa Vista, onde o maestro Karabtchevsky se apresentou tantas vezes, em uma delas reunindo duzentas mil pessoas para acompanhar sua regência de Aída, de Verdi.
Na primeira parte, Nino solará Ständchen, D.920, melodia das mais conhecidas de Schubert, e, na segunda, Carinhoso, de Pixinguinha.
Schubert atinge a plateia grande, mas não imensa, à maneira de uma avó acariciando os cabelos do neto, da neta; ou de uma dona coçando a barriga de seu cachorro; ou de uma criança caindo no sono no colo da mãe. Cada ouvinte ocupa um espaço entre um som e outro do oboé. Susi prevê o que pode acontecer. Elisa se dá conta de um Nino além daquele tão seu conhecido. A mãe sente o sangue ferver. O pai tem vontade de sair correndo, correndo, correndo, até Roma, até onde já não está mais a mãe. Um motorista de ônibus fecha os olhos, algo que nunca havia feito a não ser ao dormir. Uma senhora de terreiro respira forte a ponto de sossegar suas palpitações. Um neném, deitado no moisés, sonha pela primeira vez.
No Pixinguinha, Nino levita. A orquestra diminui o som para o oboé ficar ainda mais evidente. O maestro ergue o rosto na direção do céu. Susi está apaziguada, um segredo não é mais segredo. Elisa está eufórica. A mãe toma a mão do pai, o pai toma a mão invisível de sua mãe. O motorista, ainda de olhos fechados, abre os braços e sorri. A senhora, discretamente, move os pés no ritmo da música. O bebê sorri.
Nino bate nas nuvens.
Chove, quer dizer, as lágrimas do oboísta começam a cair como uma chuva refrescante sobre todos. No Zoo, os macacos se aquietam, os elefantes se deitam, as aves guardam as asas e os pios.
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Alexandre Brandão é escritor mineiro, morador do Rio de Janeiro, autor, entre outros, de “Aí onde não cabe” (editora Patuá). “Chorão” estará no próximo livro de contos do autor, ainda sem título.