
*Por Whisner Fraga*
O mais estranho nisso tudo (Patuá, 2023), romance de Mauro Donato, apresenta uma história complexa sobre acontecimentos do Brasil contemporâneo, sob a óptica de três protagonistas: Kleber, um ex-presidiário com tendências anarquistas, Luísa, uma fotojornalista que conquista a grande mídia e Alexandre, um jovem rico que se envolve em ativismo político. Tendo como pano de fundo os protestos contra os aumentos das tarifas do transporte público, em 2013 e a Copa do Mundo de Futebol, em 2014, o livro explora temas como a crítica à manipulação de informações de grandes veículos, a construção de narrativas para encobrir malfeitos, a desigualdade social, as contradições inerentes ao ativismo e os interesses nas relações interpessoais, de forma muito habilidosa, sem descambar, em nenhum momento, para a tentação do partidarismo ou dos clichês.
A narrativa de Donato direta, com diálogos que tentam retratar diversas camadas sociais, cada qual com seu jeito de falar, com seus dialetos. Além disso, por apresentar uma estrutura não linear, alternando entre diversas linhas temporais e vários pontos de vista, o livro se torna transgressor e um desafio para o leitor afeito a uma ficção mais comportada.
Luísa Moreira, atraída pelo poder, mas com uma forte consciência política, engajada politicamente, é um retrato da ascensão de pessoas de classes mais baixas, graças ao incentivo de políticas sociais. Independente, determinada e pragmática, tem uma história de ativismo com Kleber e se sente culpada por não o ajudar quando ele deixa a prisão. Luísa vive uma relação conflituosa com Alexandre, um sujeito privilegiado, que vai iniciar uma jornada contra as próprias crenças. Já Kleber, com um “inato espírito de liderança”, se posiciona visceralmente contra a Copa do Mundo no Brasil, alegando que o país deveria ter outras prioridades, denunciando a exploração capitalista, a alienação do sistema educacional e uma paz ilusória que beneficia apenas as classes dominantes. Torturado na cadeia, vê a própria saúde deteriorar, mas mantém a postura combativa, se recusando a se submeter ao sistema prisional.
Mauro Donato usa de sarcasmo, ironia, para ridicularizar alguns discursos e ações de personagens, dando uma atmosfera de isenção à trama. A linguagem, aqui, é suporte para expor um sistema de injustiças, falcatruas e outras mazelas fartamente encontradas na sociedade. O tom coloquial, muitas vezes usado no livro, serve para dar um caráter mais realista e direto, destacando não só o contexto da história, mas também a visão de cada um, segundo o papel desempenhado na trama e a própria forma com que interpreta a realidade. Em diversos momentos, Donato contrapõe uma fala erudita e politizada a outra, alienada e superficial, de maneira muito competente, sublinhando as diferenças ideológicas e sociais dos protagonistas. Cabe, ainda, citar a multiplicidade de discursos, quando o texto dialoga com outras expressões, como slogans de cartazes, letras de músicas, notícias de jornais, postagens em redes sociais, deixando o estilo dinâmico e chamando o leitor para perto da trama.
Em “O mais estranho nisso tudo”, Mauro Donato constrói um romance de alta qualidade, que transcende um retrato raso dos protestos de 2013 no Brasil, trazendo uma crítica social incisiva em uma linguagem moderna, de um escritor competente. Mauro Donato leva o leitor a tomar partido a respeito de uma sociedade dividida, polarizada, com as contradições cada vez mais afloradas. A força da militância, mesmo com as diversas incoerências que carrega, é colocada à prova, diante de uma classe média alienada e cada vez mais egoísta. O romance não aborda levianamente este problema, antes apresenta diversos pontos de vista para que o leitor pondere sobre cada um.
Com um registro sarcástico, irônico, cínico, algumas vezes, o livro não traz respostas prontas, soluções fáceis, mas sim um convite para que o leitor questione o status quo, a própria classe a que pertence, a forma com que se relaciona com as mídias, com os outros e com o mundo. Imersos nessa dificuldade de saírem da própria bolha, Luísa, Kleber e Alexandre sobrevivem, comprovando que o mais difícil nisso tudo e, em consequência, o mais estranho, é a dificuldade de enxergarem o outro e as nuances das diversas realidades que os cercam.
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Whisner Fraga é professor e autor de mais de uma dezena de livros de ficção, tendo contos traduzidos para o inglês, alemão e árabe. Escreve para o coletivo “Crônica do dia” e mantém o canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que resenha obras de escritores contemporâneos. É editor na Sinete.