* Por Murilo Casacio *

De copo na mão, ouvia o que eles diziam e quase não falava, talvez já estivesse longe, à parte de tudo o que se passava ali. Olhava fixamente para o whisky, os gelos, o âmbar do líquido, embalava-me. Não sabia do assunto, os pontos de vista, as discordâncias, os raciocínios, as risadas, a razão das risadas, os dentes cordiais. Só sabia da música dentro de mim, que tocava em meus ouvidos, distante, fundo, Debussy, dentro e fora ao mesmo tempo, no mundo e em algum outro lugar só meu, quase sempre. Preso ali, na ponta da mesa, solto, apartado de todos, em uma pequena roda de homens conversando, eu e outros três, enquanto suas esposas andavam pela casa, vistoriando crianças, dirigindo fotografias do mundo virtual, lançando sorrisos umas às outras. Melhor seria não ter vindo.

Uma menina passou correndo, indo em direção ao garoto parado no começo do corredor, estancou na frente dele, com o indicador tocou a ponta do nariz do menino, balançou, apertou, despertando-o para uma outra realidade.

Do lado oposto, da direção de onde ela havia partido, vinha um choro de criança, aos berros, enchendo o ambiente, fazendo os homens virarem os rostos, torcer as faces. Ninguém parecia ter notado o meu sumiço.

Na mesa, meus colegas continuavam conversando, sem dar por mim. Ao redor, a festa seguia; uma música, as crianças, as mulheres, comidas e bebidas. Fechado, atrás do vidro, através daquela camada de cristal, observava toda a movimentação, sentia meu corpo molhado, encharcado não sei por que líquido, talvez o choro da criança, uma bebida derramada, sentia apenas, mas não conseguia observar meu corpo. Os sons pareciam ter desaparecido, ouvia-os de um outro jeito, estranho, mais distantes, vibrando em mim, não entendia o que as vozes diziam, também não via mais a menina, nem o nariz do garoto, minha respiração era outra, úmida, intensa, envolta por um líquido frio. Queria chegar mais perto, me aproximar para tentar compreender, ver, assegurar-me do que estava acontecendo comigo, mas bati de frente com uma barreira, um vidro, que limitou meu avanço. Saí de lado, voltei em ziguezague, serpenteando o corpo, indo ao outro extremo, onde esbarrei na mesma parede de cristal, tela, cortina que mais me separava do mundo ao redor. Margeando aquela transparência, olhava, não entendia, dava voltas em torno do copo buscando explicações, me acalmar, e ia me embriagando no movimento, da bebida, do whisky, da repetição ininterrupta, como se o tempo não existisse, não passasse, como se aquela festa pudesse ser qualquer outra festa, que já foi, que ainda aconteceria, que nada seria diferente, e todos diriam quase as mesmas coisas, mesmos semelhantes, rodando sem parar, à minha volta, sem sentido, e eu, o esquisito, embutido em mim, ali no copo, num silencioso dilúvio meu, embebido nas minhas águas de todas as minhas correntes escondidas, submersas, com movimentos indiferentes ao todo resto que se passava ali, além da redoma, pra fora das alturas do paredão de vidro que me aprisionava, das vozes que eram tão somente barulhos, sem dizer, sem tocar, sem chegar no dentro em que eu estava.

Me deixei ficar um pouco imóvel, sosseguei, descansando da minha agitação, só vendo, analisando, acumulando forças para alguma estratégia. Tentaria escalar as alturas, ir além do copo, sair daquela redoma, das paredes transparentes, invisíveis, quase inexistentes, mas que existiam e podiam ser sentidas, prisão. Em ousadia extrema, reuniria forças. Talvez, ao menos, me vissem. Se ultrapassasse o nível da água, alguns olhares se voltariam para mim, para o meu movimento, e compreenderiam o que se passava comigo, e viessem em minha ajuda, em meu socorro. Parado, tremi em esforço, num impulso, me lancei ao alto, distante da água, voava, senti o ar. Choquei-me com a barreira de vidro, o corpo de lado depois do grande impacto. Me contorci, caí sem jeito contra a pedra de gelo, que antes parecia pequena. Apesar de todo o esforço, resignado, mais ainda pelo desapontamento, esperei para fazer outra tentativa. Faltou pouco, quase transpassei a borda do copo. Se tivesse tido êxito, todos se surpreenderiam com a minha aparição em cima da mesa. Um peixe, do nada, saído de algum lugar, vindo dos altos, do além, um milagre. Não o do vinho, o dos peixes. Ou, então, como num sermão de Vieira, eu, como um de seus próprios peixes que falasse.

Outras vez as minhas forças, saltaria para fora do copo, deixaria para trás as invisíveis transparências, as paredes que me impediam de ir além, abandonaria a embriaguez, as voltas em círculo raspando as extremidades, margeando um abismo sempre distante, tornaria aquela embriaguez lúcida. Eu queria mais mar… Deixaria de olhar para as repetições dali de fora, cingido pela força que me comprimia, e sim, desta vez, transpassaria, voaria para mais. Já podia ver os olhares desentendidos, em cima da mesa, por cima de mim, diante de meu corpo. Tomei forças, me impulsionei, agitei o rabo, as guelras, estava no ar, mais alto que antes, acima do que imaginava. À frente, a barra de cristal, bem próximo o limite da borda, o rabo raspando o vidro, e o impacto na superfície dura da mesa, o corpo inflando em exasperação, o susto, a sensação de morte, desprotegido, exposto. Ninguém, nem olhos, nem barulhos, nada. Desespero ininterrupto de inflar e esvaziar, à procura de respirar, e de repente uma mão, a minha, eu dois, peixe-homem, na mesa e ali sentado, dentro e fora, do copo, de mim, onde eu?, e a minha mão vindo em minha direção, me pegando com as pontas dos dedos, sutilmente, e eu estremecendo, eu, pondo fim a mim mesmo?, mas de um jeito calmo, me deixando cair na palma de minha mão, erguendo-me da mesa, e me pondo, outra vez, dentro copo. Quem me ouvia?, quem ditava as coisas que brotavam em minha cabeça?, ali, agora dentro, não havia mais eu-de-fora?, o eu que dizia tudo do mundo, que soprava, que filtrava todas as impressões? ali dentro ainda me via ali fora, ouvia, agora, as pessoas, todas as conversas, mais nítidas, evidentes, tolas, perdidas em não fazer silêncio, toda aquela balbúrdia incessante, sem trégua, de falar, falar, falar por falar, sem calar, sem ficar em si, e eu peixe-recluso dentro-e-fora, todo-em-mim e no-ali-deles-todos-sem-sentir, e sentindo, e lendo, e ouvindo, e vendo.

Então, eu vi de novo aquela menina. Vinha correndo, se aproximando cada vez mais rápido, mais nítida, gritando e olhando pra trás, sem parar de correr. Um balanço forte e o líquido todo se agitou. Agora, eu fora, vendo o copo escorregando, tentando me salvar. Mas veio o estrondo. O copo quebrado, meu corpo no chão. Desesperado, eu apalpava os cacos, buscava-me no piso, no líquido. Deitado, a camisa molhada, o sangue nas mãos, e as pessoas em volta de mim, espantadas, olhando-me de cima, tentando me tirar dali, do chão, do que só restava: meu sangue e o copo quebrado.

E eu, peixe, nadando, satisfeito, abandonando a festa.

*

Murilo Casacio é natural de Campinas, é escritor e professor. Em 2019, publicou Reflexo reverso, livro de poemas pela Folhas de Relva Edições. Leciona Literatura Brasileira nas Faculdades Integradas Maria Imaculada (FIMI – Mogi Guaçu) e Língua Portuguesa na rede SESI-SP. Ultimamente, tem participado de cursos e oficinas de criação literária e se dedicado ao universo ficcional, escrevendo contos e elaborando seu primeiro romance.

 

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