* Por Claudia Nina *

Acordou mais imensa, acrescida das sobras da lasanha. A diferença: estava cheia de decisão. Qualquer um pode dar a volta por cima. (Até tu, bruta?) Olhou no espelho (sempre ele, o espelho malvado) e acreditou ser capaz de mudar o rumo da vida. Não podia se achar tão pouco alguém só porque estava alguns (muitos) quilos acima do meu peso ideal.

Embolou a própria imensidão no meio do edredom; por um triz, não se achou. Não sabia onde terminava seu corpo e começava a coberta. Pôs o olho de fora como se fosse um bicho hibernando em primavera.  No sol, a estação amena, ventinho suave; dentro, um frio de lascar. Faltava coragem para sair da inércia, colocar o outro olho para fora e depois a boca (no mundo).

Quando estiver de pé, torta, cambaleante, do jeito que for, ela vai (para onde?). Pior do que ser uma gorda sozinha é ser uma gorda sozinha sem ter para onde ir. Que sofrimento dentro de uma alma que tem como dono um corpo que não sabe para onde se movimenta. Parece um boneco inflável, daqueles que se movem quando venta ou alguém esbarra sem querer. Sim, porque as pessoas só esbarram nela sem querer.

A figura inflável quer virar gente. Precisa acreditar que exista alguém neste mundo capaz de querer abraçar a sua circunferência. Sentia uma pontada de esperança na alma. Aquecida por este delírio subitamente insuflado, começou a se recompor. Lembrou das outras tantas situações em que foi ridícula. Aquele jantar com o amante amassado foi apenas um episódio.

*

Outro dia foi ao dentista com uma blusa nova. De malha, bege. Só que se esqueceu de tirar o selo G (de grande, de gigante, de gorrrrda) que vinha preso justamente logo acima do peito. Fosse porque o G era bem grande e sobressaía na blusa clara, fosse porque o dentista estava nada discretamente de olho no peito dela, o fato é que o dentista avisou da existência do tal ponto G cravado ali, no peito.  Em vez de se sentir invadida no mais profundo G por uma pessoa que mal conhecia, sentiu-se ridícula, pequena e indefesa diante da grande gafe. Por que motivo o dentista olhava seus peitos? Estaria minimamente interessado nela? (Esquecer a suspeita erótica. O ridículo de se achar atraente por um homem jovem é quase um surto de Alzheimer.)

Estava a ponto de preferir o spa e para lá despejar os quilos a mais, viver um tempo de muita fome, comer mato e se encher de gases – no fim, ia chegar ao consultório do analista resoluta para pedir o que ele, o analista, lhe devia. Sim, porque alguém tinha que lhe dever alguma coisa neste mundo. Assanhou-se quando pensou que o spa poderia ser um lugar cheio de gente nova para conhecer. Se ela se distraísse com gente, esqueceria a fome.

Tão pouco ia querer graça com homens amassados quando ela se desembolasse “Esquecer-me da minha pior parte; esquecer o tanto de ruim que ele foi (ainda é) em mim. Esquecer-te de mim”, filosofa.

Malas e bagagem

Decisão é assim: não se pode pensar muito, é um mergulho e pronto. Se começar a pensar se deve ou não fazer as malas e se internar em um spa, somar os prós e os contras, verificar pela quinta vez o dinheiro que não tem, aí a indecisão tomará as rédeas e estará de volta ao cenário de sempre: um apartamentinho estreito onde entulha as frustrações de cada dia. Um spa não é nada grandioso, mas pode ser um começo.

Então ela se levanta devagar, junta os pedaços que se espalham até se encontrar debaixo das cobertas. O peito encontra primeiro – o tamanho ajuda. Depois vem o resto até encontrar por fim os dois pés inchados. Quanto trabalho para um levantamento de peso!

Consegue sair do chão.

Arruma tudo. Mala de rodinha para não se despencar carregando peso; joelhos gordos e juntos são sempre fracos. Coloca na bagagem o necessário, quer viver com pouco. Já que vai também comer pouco, começa a se preparar para o menos. Ela, que já tinha se acostumado aos excessos.

Uma empolgação acende-a inteira. Talvez encontre pessoas que poderão não achar ridícula a sua pessoa. Quanto a acharem gorda, bem, mesmo que a achem gorda, o que obviamente vai acontecer, ninguém saberá que até bem pouco tempo foi magra e poderão pensar que a gordura sempre lhe pertenceu.  Não saberão que herdou a gordura dos maus tratos com ela mesma ao longo de alguns anos. Vai quase linda porta afora.

Escolheu um vestido de malha curtíssimo de propósito. As banhas aparecem arrochadas, para logo depois se esparramam sem acerto, como se estivessem em revolução: laterais de peito se revoltam bravamente, quadris e ancas se espraiam sem lei; mais à frente e acima os braços obesos parecem dois de cada lado. E as costas? Melhor pular essa parte. Ela é toda um balanço só, quanta ginga (mole) a caminho do mar.

O moço magrinho

Há tempos não se sentia tão leve quanto no exato momento em que o rapaz do spa, uniforme impecável, a recebe de mãos abertas, pronto para pegar as malas. Algo de estranho e bom. Podia beijar na boca do moço bonito e magrinho. Quase se apaixona. Mesmo se ele não quisesse, ela o pegaria à força. (A gorda enlouqueceu). Estava prestes a aceitar uma orgia.

Só de pensar que podia perder peso e ganhar formosura aos quase 50 anos  sentia-se no colo de alguém. Um calor de forno para pudim (sempre a comida, céus?) acende-a por dentro. Olha mais uma vez para o moço novo e magrinho que parece sorrir de volta. Logo imagina coisas: alguém se interessa por ela, mas pode estar sendo apenas gentil com uma hóspede. Será? Eis o problema (lê-se: perigo) da carência. Quando se está gorda e sozinha qualquer sorriso gentil é mal interpretado e aí, pronto, um passo enorme para novos erros.

Ignora tudo isso e sorri para o moço magro das bagagens. O corpanzil inteiro se alegra. Ela é toda uma enorme boca cheia de dentes, boca aberta à espera de um beijo bom. E ele, pobre moço das bagagens, não imagina nada disso. Estende a mão à espera de uma gorjeta. Quase pensa que o gesto é para um doce aperto, mas algum pitaco da fada madrinha a acorda da ilusão e ela dá o dinheiro.

Sempre que está prestes a enlouquecer, a fada madrinha às avessas aparece para o resgate. Ela teme situações em que sua cliente mergulhe no ridículo. É muito importante ter uma entidade assim por perto. Ela se recolhe depois do quase transe. Se a gorda agarrasse o moço magrinho à força, não sobraria osso sobre osso.

Talvez o spa seja realmente um hospital de almas, e ela possa enfim ser curada da minha doença mais mortal: a de se achar ridícula dentro do corpo que mal sustenta com rejeição.

A súbita visão do moço magrinho balançando o corpo enquanto leva as bagagens para dentro do quarto não foi apenas uma visão – foi uma miragem que viu no deserto adiposo. Foi atrás dele em pensamento. Quis tanto o moço magrinho. Deixou o desejo da orgia aflorar. Quanta ousadia, pensou.

Segurou com firmeza o delírio – não poderia deixar passar esta oportunidade: a de se ver pronta para uma deliciosa orgia.

A orgia e o espelho

Agarrou o moço (em pensamento). Fez tudo o que imaginou com ele (em pensamento). Ele a achou a mais linda das mulheres (em pensamento), a ponto dela se esquecer de que entrou no disfarçado hospital de gordos para ver se curava a alma também doente de flacidez. Um spa é só de fora um lugar para perder peso; é um templo dedicado ao deus da imagem interna. Entra-se ali para que, mesmo sem perder um grama sequer, a pessoa consiga se olhar de novo no espelho e recuperar o desejo de continuar olhando a própria imagem.

Mas a orgia.

Foi atrás do moço magrinho e fez dos sonhos a mais deliciosa transa. Rolaram nos edredons. Ela se enroscou em cada ossinho dele, descobrindo por fim as gorduras ocultas. Ele, por sua vez, afundou-se em todos os excessos. Nem percebeu, ou percebeu e gostou, que quase não há mais ossos naquele corpo. Quanto tempo durou tanto rolamento não se sabe. Luaneide foi a mas amassada das mulheres (em pensamento).

Pediu vinho caro e tomou até o último gole. Esparramada, o corpo aberto se deixou ver no espelho do quarto. Não queria meia luz. Queria toda a claridade do mundo sobre as banhas.

Nem bem começou o tratamento para emagrecer, o que viveu nos primeiros instantes valeu por tudo o que poderá acontecer nos próximos dias em que talvez tenha de comer mato como se fosse uma vaca. Não, subitamente recusa o desejo de comer mato, quem sabe se não se levanta agora, ainda com o gosto do magrinho na boca, e se manda antes mesmo da primeira estúpida refeição? Os cabelos embolados, vermelha de tanto amasso. Não procura pelo magrinho porque as miragens se apagam como fumaça.

Ela é a mais linda mulher do mundo. Precisava se afastar do espelho viciado em maus pensamentos, encontrar um reflexo amigo, capaz de lhe afagar e responder com amor quando corajosamente se lançasse aberta diante dele – sim, o espelho do quarto está lhe vendo como nenhum outro espelho a viu durante tantos anos.

O traseiro magrinho do moço das bagagens foi um operador de milagres.

Depois de conseguir se levantar inteira e recolher o que dela ficou alegremente transbordado, vai sair do quarto e se espalhar pelos corredores. Alguém que a veja poderá achar que está louca. (Ninguém ganha respeito por si mesma tão rapidamente, será?).

Peitos enormes e abundantes, quem quiser menores que os procure em outro corpo; o dela tem estes aqui para oferecer. O vestido não está arrochado, está justo. Eis a correção. Lá atrás ouviu tantas vezes a palavra arrocho e se sentiu maltratada. Sofreu pauladas. Agora nem dela mesma aceitará desaforos.

Bate a porta do quarto e promete ao espelho voltar logo. Tem saudades de si, esparramada e feliz. Sai pelos corredores à procura de outras miragens – quem precisará comer mato quando se tem um pensamento cheio de molejo, permeável ao que é saudável e novo?  Em pensar que durante tantos anos abriu portas para o amante amassado, homem roubado e quase sem proveito, abraço mirrado e beijo duro. Quanta humilhação.

Saiu para o restaurante, hora do jantar. Muita gente de verdade sorri. Quem disse que para se abraçar alguém precisa conhecer bem? Existem abraços de desconhecidos que são o maior conforto do mundo. É nestes onde ela se afoga.

 Mais beijos

Hoje é aniversário de Luaneide. Por isso raspou as economias e se permitiu estar ali depois de tanto tempo sem nenhuma surpresa; a cada esquina, o mesmo restaurante a quilo, onde se empanturrava de coxinhas e esfirras para fechar a boca graúda com o que a deixava satisfeita e silente.

As decisões mais importantes da vida acontecem num lampejo. Quem passa uma existência inteira maquinando o futuro vive sem o futuro; pés, mãos, corpos, braços e pernas enfaixados no presente. Toda mudança é um de repente. Enquanto ela esperava o maldito celular tocar, abrindo a porta para um homem roubado entrar, ela se roubava os melhores momentos. Há sempre o dia em que tudo muda.  Esse dia, enfim, chegou.

A noite não acaba cedo. O jantar se alonga em muitos abraços, e ela beija na boca de desconhecidos. A boca de um quase obeso que também se internou para se curar. Foi um beijo bom que acabou virando orgia também.  Já se viu traindo o moço magrinho com um quase obeso de beijo bom. Juntos, somam a refeição suculenta de 200 mil calorias, dois imensos.

Embalou o homem balofo para presente.

Depois encontrou o gringo ruivo. Nunca antes tinha amassado um ruivo. Ele era todo ruivo, o que foi uma alegria imensa arder lá embaixo. Outra surpresa. Só não poderia se viciar em ruivos, ela sabia, mas o corpão dela se apaixonou por aquele ardor. Pelos coloridos incendiaram-na por dentro. Quantas alegrias em tão pouco tempo. Quando percebeu, estava pintada de ruivo da cabeça aos pés, como se tivesse pegado fogo, logo ela, acostumada às gélidas primaveras… E depois apareceu o grandão, um moreno com quem topou no elevador, que parecia ter dois metros, o que foi um assombro. Pensou que ele não fosse caber dentro dela, mas que maravilha saber que tinha espaço sobrando para os tamanhos…

Achou-se curada, ou quase, a um passo de poder se desfrutar sem temor ou piedade. Quem diria, recuperou o tempo perdido. E ainda dizem que o tempo perdido não se recupera. Em poucos dias vive-se uma eternidade. Às vezes, é preciso beijar um desconhecido para que, do encanto, a mágica do brejo aconteça.

Descobriu tudo isso sem a ajuda da minha fada madrinha às avessas que a abandonou sem deixar vestígios.  Pensou ter visto a varinha caída no jardim, mas era um galho branco e seco. Ela certamente não concordaria com s orgias, os beijos e os abraços em desconhecidos –  Luaneide seria punida com rigor.

Agora que foi abraçada, beijada e amassada com tanta alegria por desconhecidos amados, sentia-se mais leve que uma pluma. Sim, uma pluma. Poderia dizer um pássaro, mas o pássaro voa e pousa em algum lugar. Não queria pousos. Queria flanar esvoaçante. Nunca antes na história dos obesos uma gorda flanou com leveza de pluma. Seria a primeira.

Olha para o mar, Luaneide!

Em casa, abriu as janelas e deixou fugir o resto do cheiro de lasanha velha que ficou no ar. O queijo ressecado, restado e talhado.  Nem se lembrou de quem já esteve aqui, não se lembrou dela mesma ter estado ali, a mesma gorda, nem um centímetro sequer mais magra, mas incrivelmente mais leve. Ninguém precisa emagrecer para se sentir leve como uma bailarina. Essa coisa de ser magro, ossos pontudos, é para os que já nasceram magros e cheios de ossos. Engordou, é fato, mas nunca foi magrinha. Esperar que ela se estreite a ponto de se multiplicar em ossos não é sonho, é desejo de morte. Está mais viva do que nunca, ansiosa por mil pratos de lasanha com molho.

Como suportou viver se esmagando tanto? Precisa de espaço, estas janelas da pequena varanda devem ficar sempre escancaradas. O primeiro passo é trocar o espelho. Não vai quebrar o antigo porque não é louca. Dizem que ninguém se recupera do feitiço de um espelho estilhaçado. Vai deixá-lo na lixeira. A mulher que pegar, achando-se sortuda por ganhar um espelho novo, nem saberá que ali dentro tem uma gorda-de-repente aprisionada.

Depois é uma palavra tão vasta quanto uma cama king size. Não sabe o que virá depois.  Acaba de começar um agora que está pleno e robusto como o seu peitoril imponente. Quem diria. Ela se via aos restos e agora não engole mais mínimos pensamentos hostis em relação a si mesma. Tudo porque resolveu dar o primeiro passo. Enquanto dava voltas ao redor do malquerer, nada de bom acontecia.

Vai começar a vida nova com uma caminhada leve na praia – se mora num apartamento pequeno, tem em compensação o mar defronte. Quem precisa de apartamento grande quando se tem o oceano? Não pretende caminhar para emagrecer – se perder peso, tudo bem. Aceitará um corpo tão leve quanto a alma de agora, mas este não é o intento. Gosta de lasanha.

E o celular, que antes atendia afoita, à espera do homem-mal-me-quer? Ah, este sim, espatifa sem dó nem medo de ganhar sete anos de azar. Lança o aparelho ao vento e promete comprar outro – um número que só dará aos desconhecidos de beijo bom ou aos magrinhos de molejo, ou ainda aos que quiserem amar com abraços longos e apertados. Nunca mais o beijo duro, nunca mais o homem dormido como pão velho.

Luaneide antevê mais surpresas à beira-mar.

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Claudia Nina é jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a Lamparina e A misteriosa mansão do misterioso Senhor Lam e A Repolheira. Publicou os romances Esquecer-te de mim e Paisagem de porcelana. Assina coluna mensal na Revista Seleções (Reader´s Digest) chamada ‘Papo de Livro’. Atualmente, finaliza seu primeiro livro juvenil, Amor de longe, ambientado em Porto Alegre, e o infantil Miudinha: memórias do sertão.

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