*Por Eurídice Figueiredo[1]*

Finalmente algumas editoras brasileiras começaram a publicar traduções de autores francófonos, sobretudo do Caribe (Edouard Glissant, Aimé Césaire, Maryse Condé). Agora sai A noite dos príncipes encantados, de Michel Tremblay, numa tradução de Luciene Guimarães de Oliveira, para a editora O sexo da palavra. Tremblay é um dos autores mais prolíficos do Quebec, com uma obra que teve enorme impacto no Canadá e que já é estudado no Brasil desde os anos 1980, sobretudo na UFF e na UFRGS, pioneiras nos estudos da literatura quebequense.

Para falar de Tremblay é preciso abordar um assunto incontornável quando se trata da língua no Quebec: o do uso do joual como língua literária. O termo joual, derivado da má pronúncia da palavra cheval, é, segundo o Dictionnaire Québécois d’aujourd’hui, “o falar quebequense das classes populares, caracterizado por certos traços (sobretudo fonéticos e lexicais), os quais são considerados como desvios do uso correto ou normativo e que são frequentemente tomados de empréstimo ao inglês” (apud DESHAIES, OUELLON, ROCHELEAU, 1998, p. 128). Segundo Laurent Mailhot, o joual “é um nível de língua, não uma língua, nem um dialeto, nem um patois, nem mesmo uma gíria. Em literatura, trata-se de uma linguagem, um estilo, uma escrita […], uma ideologia entre outras” (MAILHOT, 1974, p. 8).

Quando em 1968 o Théâtre du Rideau Vert apresentou a peça Les belles-soeurs, de Michel Tremblay, deu-se um grande debate no meio cultural do Quebec porque o joual falado pelos personagens mostrava, no espelho dos quebequenses, uma face muito desagradável deles mesmos. Entretanto, essas mulheres traumatizadas “não podiam falar  outra língua senão aquela, familiar e sempre pitoresca […], contudo rarefeita, tumefeita, tristemente imprópria à troca, testemunhando as mediocridades da escola, das hipocrisias da elite e das realidades da assimilação” (PONTAUT, 1972, p. v). Pretender, como alguns fizeram na época, que o joual fosse a verdadeira língua dos quebequenses, é cair naturalmente numa armadilha, mas é preciso reconhecer que a tomada da palavra era necessária e ela passava pelo joual. O joual foi muito usado por Michel Tremblay no teatro e só muito parcimoniosamente em seus romances, a fim de encenar a fala um pouco tosca das classes populares. Depois da querela, a questão do joual acabou se esgotando. Como destacou Marcel Rioux, os processos de dessacralização são necessários para derrubar as barricadas criadas pelas elites. Como outros minoritários, os quebequenses voltaram contra seus adversários as palavras que serviam para humilhá-los. “A melhor maneira de curar é se reconhecer tal como se é e ir ao fundo de si mesmo. Foi neste processo de liberação que os quebequenses se engajaram; ele passou pela exorcização do joual” (RIOUX, 1980, p. 33).

Um outro aspecto igualmente incontornável é o uso do  inglês hibridizando e desterritorializando o francês padrão, característica que se vê no romance quebequense desde o início, mas que prevalece a partir dos anos 1980. Les nuits de l’underground (1978), de Marie-Claire Blais, por exemplo, já anunciava o que viria nas décadas seguintes: embora ele seja escrito em francês, uma das personagens só se exprime em inglês. Se Mikhaïl Bahktin considerava o plurilinguismo uma característica da linguagem romanesca, em muitos dos romances do Quebec não se trata mais só de registros de língua, denotando classes sociais ou diferenças regionais ou geracionais; há um plurilinguismo em que duas ou mais línguas entram na composição da trama do texto. Sherry Simon (1994) usa a expressão “tráfico das línguas” para analisar o estado atual da literatura no Quebec; este tráfico tem a forma de um movimento de idiomas e ideias que testemunha a busca de novas fontes de elementos intelectuais e estéticos. Os  usos transgressivos da língua, que são inerentes ao processo criador, encontram espaço para alargar os horizontes, pela introdução de elementos estrangeiros, que criam tensões entre língua vernácula, língua veicular, o inglês como lingua franca de comunicação global além das referências constantes a uma cultura globalizada. Esses textos “definem a identidade cultural como um processo de negociação sempre atuante” (SIMON, 1994, p. 33). Esta situação, apesar de sua especificidade, pode encontrar equivalentes nas outras regiões linguísticas do continente, que incorporaram seus falares populares e/ou regionais para procurar dar um caráter “nacional” à literatura. Se o uso da língua é trangressivo em toda criação literária, em regiões em que há bilinguismo, plurilinguismo, diglossia ou falares populares, a mestiçagem linguística se impõe.

Referências

DESHAIES, Denise, OUELLON, Conrad, ROCHELEAU, Claude. L´aménagement linguistique au Québec: historique et perspectives d´avenir. In: BELANGER, Alain, HANCIAU, Nubia, DION, Sylvie (org). L´Amérique française: introduction à la culture québécoise.  Rio Grande: Editora da FURG, 1998. p.89-132.

MAILHOT, Laurent. La littérature québécoise. Paris:PUF, 1974 (Coll. Que sais-je?).

PONTAUT, Alain. Les belles-soeurs de Michel Tremblay cinq ans après. In: TREMBLAY, Michel. Les belles-soeurs. Ottawa:Lémeac, 1972.

RIOUX, Marcel. Les Québécois. Paris: Seuil, 1980.

SIMON, Sherry. Le trafic des langues. Traduction et culture dans la littérature québécoise. Montréal:Boréal, 1994.


[1] Professora da UFF  foi professora visitante na Université du Québec à Montréal e atua na PPG da UFF. (Universidade Federal Fluminense)

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