A voz contundente, implacável e necessária da periferia

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Por Ronaldo Cagiano *

Nos últimos anos, vem se (a)firmando, com muita pujança e versatilidade a voz da periferia, num movimento permanente de dar vez, voz e espaço às manifestações culturais, por meio das suas diversas linguagens artísticas, que se impõem não apenas como grito de resistência, mas como autêntica e plural ressonância das expressões de uma comunidade.

Nesse diapasão, a música, o teatro, a dança e a literatura vêm ganhando justo e notório espaço, principalmente porque espelham não somente um grito contra uma realidade sócio-econômica excludente, mas também surgem como pulsão de uma energia criativa e estética, tendente a transmitir um viés crítico e uma maneira peculiar de expor as demandas da arte que viceja nesses locais e que, por conta das contingências, por muito tempo viveu seu apartheid e um solene e criminoso silêncio da mídia.

Um dos mais contundentes exemplos dessa realidade cultural multifacética – que se anuncia pelo hip-hop, pelo funk, pelas dicções poéticas e pela ficção – é o trabalho realizado pela Cooperifa. Movimento cultural que há mais de uma década vem revolucionando a arte por meio da participação popular, principalmente, de artistas e escritores excluídos do mercado cultural hegemônico e monopolizado.

Ao promovem seus saraus, encontros, seminários, apresentações e trocas de experiências criativas, não apenas nos bairros da periferia, mas em importantes espaços e centros culturais da Capital e da grande São Paulo, chamam a atenção para a coerência, vitalidade e responsabilidade de suas propostas.

Dentro dessa atmosfera de criação e envolvimento, inúmeras parcerias e interatividade têm proporcionado o surgimento de um novo momento ou conceito literário – seja na poesia ou na ficção –, em que trabalhos de autores como de Ferréz, Sérgio Vaz e Rodrigo Ciríaco vêm despontando no Brasil e no exterior.

Tendo a  palavra como testemunho existencial e o verbo lúcido como acicate e libelo, transformam linguagem suas expectativas, reivindicações e demandas, e essa arte por toda a parte, culmina num poderoso instrumento de denúncia, ao mesmo tempo como expansão de um desejo onírico de superação do imenso fosso que separa as tantas cidades que habitam a grande metrópole.

Em seu volume de contos Te pego lá fora, relançado recentemente pela editora Dsop, o jovem poeta, ficcionista, professor e agitador cultural Rodrigo Ciríaco dá asas a esse imenso caleidoscópio que é a pungente realidade do ensino público, ao retratar, em suas histórias, o quotidiano da sala de aula e os conflitos, dramas, dilemas e enfrentamentos não apenas do professor, mas do aluno, da família e da própria atividade escolar.

Nessas pequenas e incisivas histórias, (re)colhidas pelo seu olhar cirúrgico e percuciente, o autor mapeia um imaginário povoado de tensões em que ensinar é tentar estender uma ponte entre a crueza da vida e a necessidade de extrapolar os gargalos do sistema didático e pedagógico, na esperança de realizar um salto dialético ou uma simbiose entre o impossível e o desejado.

O Rodrigo professor transita pela crueza de vivências amiudadas pelo caos e pelas circunstâncias desagregadoras e desistimulantes e é na pele e na alma do escritor que – entre ficção e realidade – panoramiza o esse imenso abismo em que vivem meninos e meninas dentro e fora dos muros da escola. Além do quadro-negro onde as lições são apregoadas, há a o negro quadro que antecede o ingresso do aluno; e é aí que o professor-escritor vai deslindando, com seu faro lírico e com sua inflexão ética, um universo desafiador.

Como numa prosa de palimpsestos, cada história vai nos revelando camadas antes invisíveis de uma sociedade esgarçada pelos contrastes e potencializada não apenas pela miséria econômico-financeira, mas pelo declínio moral, pelo veloz e acachapante escalonamento de valores, hierarquizando o medo, a violência, a insegurança, as agressões físicas e psicológicas (como o bullying, a gravidez precoce, o assédio sexual), numa tênue fronteira entre a civilização e a barbárie.

Reverberando em sua literatura esse “mondo cane” de dissolução e de misérias quotidianas, o autor capt(ur)ou, a partir de sua experiência no magistério, lidando com as mais aviltantes situações, a trágica poesia desse tempo marcado pelo temor, pela marginalidade, pela falta de afeto, pela fugacidade das relações familiares e institucionais e por uma escola premida num beco-sem-saídas, em que o docente se transfigura também em pai, confidente, salvador, juiz de conflitos.

Nos 27 contos que enfeixam Te pego lá fora, distribuídos em seções como se fossem as estações do ano, Ciríaco realiza a gênese de uma guerra sem vencedores: metaforiza os invernos e outonos de cada um desses seres divididos e mutilados, para acenar, apesar de todos os desenganos e desencantos que cada experiência, individual ou coletiva, possa suscitar, que ainda há espaço para um verão e uma primavera e é pela educação e pela implementação da leitura, pela transformação da sala de aula em ambiente de reflexão e crítica propositiva e também pela inclusão da família nesse processo, que uma mudança radical que se quer promover possa se alcançada.

Numa linguagem direta, contundente, seca e às vezes corrosiva, mas real e profundamente humana, Rodrigo Ciríaco preservou uma espécie de sintaxe da opressão quotidiana: a  oralidade, o sentimento e a reação de personagens que protagonizam, com suas falas arrevesadas, com suas gírias, seus chistes e maneirismos, esse mundo.

Mundo, é bom frisar –  costumeiramente tão invisível às autoridades e refratário à própria recepção da crítica literária – esta, tantas vezes reacionária, acadêmica,  burguesa e preconceituosa – e que nessa literatura forte, versátil, sem meias palavras ou camuflagens, se mostra sem verniz e com a profundidade semântica e a carga metafórica que as grandes verdades transportam.

Na mesma direção do que afirmou o crítico Marcelo Laier, que na apresentação da obra reconheceu que “o autor executa habilmente a difícil (e raras vezes atingida) transposição da oralidade quotidiana da periferia para uma expressão literária”, o estranhamento da forma com que apresentam os diálogos e a própria narrativa, ressalta a proposta do autor de ser fiel ao conteúdo e à força dessas vidas tão precárias, mas ao mesmo tempo efervescentes na busca de seu lugar numa sociedade que se pretende igualitária, democrática e humanizada.

Sem dúvida, Te pego lá fora marca a face da literatura brasileira contemporânea com um acento particular, porque subverte a prosa hoje em vigor, sempre o mais do mesmo, para tratar de questões que nos afligem, nos envergonham e nos humilham, sem dourar a pílula.

‘Rodrigo Ciríaco, que idealizou o Sarau dos Mesquiteiros, outra fonte de resistência à literatura bem comportada que andam fazendo por aí, tem consciência do papel  incômodo e catártico que uma literatura deve ter, que deve chacoalhar e subverter o que não contribui para mudar e suas ações como emulador cultural, professor e escritor demonstram o caráter revolucionário de sua ação poético-política, lembrando-nos o que já afirmou Günter Grass;  para ele, “a literatura só sobreviverá na medida em que continuar sendo subversiva. A periculosidade da literatura, a periculosidade tantas vezes superestimada pelas censuras, é o que a mantém viva. Transformando-se em mero entretenimento, elas seria um enfeite, não seria nada.”

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Te pego lá fora, de Rodrigo Ciríaco; 104 págs.; editora Dsop, R$ 19,90

Avaliação: Bom

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Ronaldo Cagiano é escritor, reside em São Paulo