Por Marcos Teófilo *

A moça atrás da vidraça me passa o ingresso e avisa que o espetáculo começa em quinze minutos. Apresso-me em direção à sala apinhada. Vou roçando minhas pernas em pernas desconhecidas, até chegar ao meu assento, no meio da fileira, onde me afundo e suspiro. Tento assim reencontrar meu eu em mim, no anseio de alguma solidão disfarçada, cercado pela audiência e pelo burburinho ininteligível de tantas vozes. Detenho o olhar num grupo de adolescentes. Falam alto enquanto tiram fotos e dedilham rápidos, em seus celulares. Compartilham imagens sorridentes para o mundo, em uma rede social, que tudo tritura feito uma boca faminta. High-tech, insaciável. Mastigando, ruminando feito uma vaca sagrada e vomitando em centenas de likes numa enxurrada de dados, que mais tarde serão transportados e analisados em planilhas e gráficos. O olho virtual que nunca se fecha nem dorme. Atento, à espreita. Tudo vê e tudo reporta. Os percentuais serão apresentados numa das salas de reunião que costumo frequentar, ainda bêbado de sono, nas manhãs de quarta. Meus olhos tentando se ajustar sem vontade na luz do dia que invade o escritório. A sala brilhante, fincada no topo do edifício. Couro e laca chinesa legítima, disse a bicha decoradora que contratamos a peso de ouro. Pelas janelas, observo o rio morto serpenteando lá embaixo, enquanto estatísticas e valores dançam na tela sensível ao toque, de última geração. Discutimos por toda a manhã. Café. Muito café para aguentar o tranco. Depois de horas, a estratégia está lançada – vamos à guerra! Desolado, concluo no meu íntimo silencioso, em segredo: somos apenas um número.

Gente jovem me dá medo. A pressa, a velocidade da fala e a desenvoltura dos gestos me intimidam profundamente. Quando os vejo, sou tomado de súbito pela nostalgia do que fui e a lembrança do que não poderei mais ser. Os dentes brancos e os sorrisos metálicos cobertos por aparelhos ortodônticos. Tudo brilha. Os olhos, a pele, as unhas. Até a raiz dos cabelos. Então observo com atenção os velhos, pois vejo neles o vislumbre do que, um dia, poderei me tornar. Prefiro a lentidão da fala e dos passos cuidadosos. Os sorrisos tímidos. Os olhares murchos de sabedoria, contemplativos e tão repletos de memória.

Não, eu não saí de casa para ver este espetáculo de dança contemporânea apresentada por um grupo que desconheço. Passava errante na frente do teatro e me arrisquei por um dos últimos lugares, no último instante. Eu só precisava sair de casa, ganhar a anonimidade da rua e das gentes que por aqui vivem e quem sabe, como eu, se arremessam às vezes no limbo de suas pequenas buscas. Anseio para que escuridão da sala, a música e o movimento do elenco no palco possam me trazer algum sossego. Devolver a ordem aos pensamentos conturbados que agora atropelam meu pensar, feito um caminhão sem freios, destrambelhado numa ladeira. Respiro fundo, me falta o ar. E meu desejo é que venha logo a escuridão e algum silêncio antes do início. Buscar dentro de mim o fio da meada que parece para sempre perdido. Onde agora, quando tudo se apresenta tão definitivamente em frangalhos, a ponta do fio aponta?

A luz morre devagar e se apaga. Fecho os olhos e mergulho no breu do esquecimento. Minha cabeça flutua e uma imagem surge no devaneio. Ah, o astronauta! Boiando levíssimo na imensidão do espaço em seu traje branco ultramoderno. Um ponto de marshmallow rodopiando preguiçoso, inalcançável no silêncio do universo sem fim. Ausência total de peso, chão, raízes, prisão, correntes, amarras ou nós. Nada que o ate. Um balão circulando num céu azul marinho muito, muito profundo. Nenhuma alma que o puxasse de volta à terra. A excitação e o medo se fundindo no êxtase da liberdade em movimentos ensaiados de câmera lenta. O olhar apaixonado fitando lá no longe o planeta azul e os astros. Astrodinâmica. Eu te amo – Ah, então, amar é assim?

As luzes se acendem no palco. Entram os bailarinos vestidos como se estivessem saindo de casa para o trabalho, numa segunda-feira qualquer. Andam em círculo, em passos largos e apressados. Os braços se movimentam como hélices. Há no elenco um moço-velho de barba grisalha longa e crespa. Por instantes, observo a sua agilidade vigorosa que, de repente, lança o peito ao ar, abrindo os braços num movimento de pássaro e, ato contínuo, se espatifa pesado sobre o palco, como se testasse assim a força da gravidade. Cataplotf! E é seguido pelos demais bailarinos e a única música agora é aquela dos corpos audaciosos se chocando sem medo contra a madeira que range e estala no impacto, o som despedaçado ecoando pela sala. Quanta coragem, meu Deus. Arremessar-se assim ao alto, liberto como um avião decolando. Subir e inclinar-se rumo ao chão, feito gaivota avistando do ar o peixe. Nenhum compromisso nesse momento tão singular e delicado, a não ser o de voltar com segurança. Levantar-se, firmar de novo os pés no solo e seguir adiante. Até o próximo salto. De um dos cantos do palco, um cachorro surge e passa devagar ao lado da moça que carrega um urso de pelúcia debaixo do braço. Como os outros, ela também rodopia, salta no ar e se espatifa no tablado, sem nunca soltar o urso aprisionado no abraço sufocante. Ao fundo, o cachorro desaparece atrás das cortinas.

De novo meus olhos estão cerrados e, no negrume da minha mente, só tenho um desejo, no meio dessa gente desconhecida. Que tudo acabe. Uma hecatombe climática como aquelas que vemos nos filmes. Ventania e água afogando a existência humana em um redemoinho apocalíptico. O fogaréu bíblico engolindo coisas e povos. Mais tarde, um sobrevivente entraria alucinado por uma das portas de emergência, sujo e faminto. E quando perguntássemos o que tinha acontecido, a resposta seria que tudo desaparecera. Eu estava no parque, era domingo, ele diria. Os carros, os postes e fios, o trem-fantasma, as construções, rodovias e pontes, árvores, guarda-sóis, a roda-gigante e os carrinhos de cachorro-quente. Tudo se fora. Trêmulo, pediria – tem um cigarro? Restaria então permanecer na segurança do teatro, dias e dias até que a poeira envenenada se dissipasse lá em cima. Definhando, trancafiados e saudosos de tudo e de todos que um dia havíamos amado. E, com fome, no andar do tempo, devoraríamos uns aos outros. Abro os olhos e observo com curiosidade o bailarino rechonchudo que rola de um lado para o outro do palco.

Volto à realidade da sala, onde o espetáculo se encaminha ao final. A apresentação se encerra e o elenco enfileirado agradece, até o cachorro. Saio para a noite.

O ar está seco e empoeirado, não chove há meses nesse inverno de brasas que se arrasta tão definitivo e que parece cada vez mais cataclísmico, perto do fim. Os oceanos se tornaram depósitos de lixo. Nos mares, baleias e golfinhos agonizam sufocados por sacolas plásticas. A água secando no passar quente dos dias, enquanto desfilamos ignorantes em nossos veículos SUV bebedores de petróleo. Nas igrejas nos cafundós do país, famílias inteiras se ajoelham, rezando por alguma chuva. Sem perceber, nos tornamos vítimas do consumismo desenfreado e insano que tomou o planeta de arrasto. Os espaços vão sendo tomados por prédios. A cidade se acinzenta. Enquanto isso, lá de cima de nossas varandas, observamos o final lento de tudo.

Pelo menos não tive filhos. Não terei que aturá-los no meu leito de morte, antes do último suspiro, apontando o dedo na minha cara. Respirando por meio de máscaras negras que filtrarão os gases tóxicos da atmosfera. Você sabia e não fez nada? E envolto numa nuvem de alucinação derradeira, eu estenderia para eles minhas mãos ressequidas, meus dedos cheios de anéis de ouro cravejados de esmeraldas e safiras arrancadas das entranhas da terra. Leve-os, veja, eu diria, são tão preciosos!

Ligo o celular. Há inúmeras chamadas não atendidas e mensagens de texto. Leio a última e meu coração afunda pesado no peito. Se você não voltar para casa vou me matar. Rapidamente, retomo o caminho por onde vim. Olho para o céu cinzento e sem nuvens, sem lua ou estrelas. Sem nada. Sigo adiante num passo apressado enquanto penso no astronauta cujo único e maior anseio, é o de pisar outra vez no chão.

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Marcos Teófilo é tradutor