Por Albano da Costa *

 

Conforme a conversa dos professores de jornalismo que tomavam whisky nacional no A esquina do mundo, em Touros, os rapazes saíram um pouco atrasados do Recife e a Rural ainda quebrou em Tibau do Sul. Como teriam de ficar quase um dia ali até consertarem o rolamento do off-road aproveitaram para ir até a praia do Madeiro nadar e ver as garotas da Mormai, patrocinadora da bateria nacional de surfe que não ocorreu devido à falta de ondas. Parece que já em Pipa Albert ficou com a uruguaia judia, levou para o quarto, mas não deu em nada e ainda saiu com uma mancha de sangue coagulado na camisa branca da Reef, o que o fez maldizer bastante toda a conjuntura. Ruivo estava com fome e foi a um restaurante mexicano tomar uma Marguerita, depois pediu uma Sol e uma quesadilla de huitlacoche e outra de queijo de Oaxaca feitas com tortillas de maiz muito boas. Macias e exóticas, devem tê-lo induzido a pensar em Mayte e suas peças de teatro inglês, alienando o calor extraordinário que provinha do tacho gigante em que os mexicanos costumavam fritar as quecas no interior de um ambiente rústico, colorido e sem ar condicionado. Ao retornarem à BR101 na manhã seguinte, ouvindo e vendo o dvd de Geraldinho Lins (Eu já sabia que um dia sentiria saudade sua/Pedi arrego todo dia àquela lua), Ruivo certamente advertiu que a paisagem de engenhos e o aroma do melaço que adoçou toda a primeira parte da viagem e o fez recuperar imagens que vagavam em alguma região da sua memória fora substituído aos poucos por emanações de um solo sem história, um solo depurado e técnico, próprio de cultivos nascidos da agroindústria canavieira. Chegaram a Natal com inesperados vento e chuva e foram diretamente para o número 20 da rua Eleonora Armstrong em Ponta Negra, onde substituiriam a pequena caixa azul por o que imaginavam ser um isopor amarelo, como de hábito, com a tampa lacrada por várias voltas de fita crepe. Mas o arisco funcionário que os recebeu de guarda-chuva, óculos escuros, uma imitação de chapéu Panamá e uma acentuada enfermidade de Blount que os fez observar bestificados como o homem ia se equilibrando em direção ao carro, disse que mais tarde entregaria a encomenda certa porque havia trazido o isopor referente a Guayaquil e não a Fortaleza. Podem ter pensado que a partir de então apenas parariam em Aracati, já no Ceará, e ambos desanimaram em ter de rumar para a estrada de novo. Todavia, no almoço com o funcionário de Natal foram informados de que as ordens mudaram e só precisavam chegar a Fortaleza na outra quinta-feira, portanto havia como descansar bastante em Natal antes de seguir o desígnio da encomenda.

Era a terceira viagem que faziam juntos para o departamento de Transportes da Universidade, sempre sob as mesmas instruções. As anteriores foram para Brasília, Natal e Buenos Aires, sendo que havia a promessa de uma encomenda para o Equador. Semanas atrás entregaram um pacote semelhante em Recife mesmo, na antiga rua dos Judeus. Era a quarta viagem de Albert, que entrara pouco antes do amigo no setor de transporte da instituição federal, mas Ruivo o conhecia desde a época dos inícios da banda em que Albert era vocalista. Em nenhuma dessas viagens sabiam o que transportavam, mas sempre tinham instruções bem definidas acerca do itinerário e do comportamento que deviam observar ao longo da consecução do serviço. Ouviram dizer que as encomendas provinham dos departamentos de Química e de História, mas não atinavam motivos, tampouco nunca houve explanação do seu chefe a respeito desses encargos. Refizeram os planos rapidamente e decidiram ficar na pousada Maria Bonita para poupar os honorários, muito embora a namorada do Ruivo morasse há dois anos e meio no 414 da rua Campos Sales, quase esquina com a Potengi e bem próximo do Colégio Ateneu, no bairro de Petrópolis, para onde ele queria ir logo, mas não sem antes aproveitar a companhia do colega para curtir as ofertas da natureza de Ponta Negra. Alugaram pranchas com o Bruno da YeahSurf e surfaram com a maré alta e ressacada ondas de dois metros até que o Ruivo se machucou em um cut off e sentiu aquilo como um augúrio para internar-se no apartamento de Mayte. Com uma camisa GG da Rip Curl que ele mesmo a tinha presenteado lembrando-se de uma namorada que tivera na Califórnia e usava camisas 2XL de um namorado anterior a ele, ela abriu a porta bem feliz, magrinha, bronzeada, cabelinho negro despenteado na altura do pescoço e olhos arredondados sempre com algo mais do que um mero olhar biologicamente funcional. Conversando muito e sedutora, ela disse que desde a última vez em que se falaram começara a fazer os preparativos para o casamento com o auxílio de Arlete, uma jovem nascida no Alasca e ex-empacotadora de Pollock, única pessoa com quem conversava no mestrado e, em verdade, hoje sua melhor amiga. Arlete mudara para o país não apenas para desembaraçar-se de sua conservadora família americana, contrária principalmente a suas atitudes políticas decorrentes de uma sexualidade problemática, mas principalmente para ouvir e falar o idioma de sua escritora favorita, a carioca Ana Cristina César, uma vez que opinava pragmaticamente ser o clima de ambos os lugares extremo e insano (Neste interlúdio/sou um dilúvio ou me afogo./ E entre espectros que comprimem,/Nada se cumpre,/O destino esfarela…). Não supunha, porém, que uma vez habituada ao país e refinando a língua equatorial começaria a ler Manuel Bandeira até conseguir traduzir “Boi Morto” para o inglês (Como em turvas águas de enchente,/Me sinto a meio submergido/Entre destroços do presente/Dividido, subdividido…). Sensibilizado com tanta ternura, inclinação talvez recalcada pela dor na clavícula, Ruivo parece haver consentido em marcar a data logo de cumprir com a encomenda de Fortaleza e, ao voltar para o Recife, pedir remoção definitiva para Natal, caso ela mesma não quisesse retornar para a Boa Vista, bairro onde a família de ambos ainda mora na capital pernambucana. Ali, passando a rua Henrique Dias e próximo da Igreja das Fronteiras de Nossa Senhora da Assunção, na memória dos pais de ambos, dom Hélder Câmara proferiu algumas homilias célebres, vinculando poeticamente o evangelho, os sufocos do burlesco autoritarismo militar e o dado geopolítico de que as ditaduras latino-americanas eram tão somente um projeto do Pentágono com início, meio e fim. Ali, Ruivo observou como Mayte se tornava uma espécie de intelectual mediana, leitora bissexta e meio anarquista a galgar as etapas das adições ilícitas e psiquiátricas. No sábado, recuperado da lesão no ombro, almoçaram muito bem e ela seguia falante e feliz. Mas na sobremesa Mayte se esmerou muito para agradá-lo e enquanto comiam os profiteroles com doce de leite cometeu o desleixo de lhe permitir contar às largas as prosaicas histórias das viagens com o Albert, rir com ele dos isopores e dos sujeitos que os recepcionavam para recolher e entregar os tais coolers e até compartilhou, meio surpresa consigo mesma, a intenção de Ruivo de conhecer a África semita e o Japão e tudo bem… Ela, igualmente ansiosa por repartir suas leituras, suas investidas tamorianas contra a Pós e as lendas geladas de um Alasca ainda mais mítico do que imagina a humanidade e que Arlete figurava com perícia (Mayte gostava muito da história da baleia), abstraiu-se para ouvir docilmente aquelas trivialidades e pinçar com a ponta dos dedos as migalhas da massa doce que caiam sobre a mesa e logo pousá-las com delicadeza no núcleo de um pires que estava próximo. Sua saída tranquilizadora foi arranjar uma feição aos farelos, talvez urdir os contornos do estado do Alasca mesmo ou outra daquelas formas simétricas das demais entidades da federação norte-americana que, pensou, projetavam os elos entre a geometria e a geopolítica. Ao final da tarde, o cenário amoroso arquitetado por Mayte começou a ranger depois que o Ruivo recebeu uma mensagem de Albert informando que teriam de sair na terça, pois lhe disseram, com tais palavras, que as condições em Fortaleza já eram as propícias. Ela esboçou um muxoxo mas conteve o sinal de indignação e ciúme e antes que seu palco romântico desmoronasse, deslocou-se como um pássaro para a varanda e de lá soltou a voz aguda para proferir prenome e nome do amado, Jorge Ruivo! intimando-o a ir para a rede dormir a sesta com ela.

Acostumados a não entenderem suas tarefas, Albert e Ruivo deixaram a Maria Bonita de madrugada e quando passaram pela rua Praia de Ponta Negra, na altura da Associação da Comunidade Muçulmana do Rio Grande ouviram o assobio do funcionário da Universidade. Receberam de novo ali mesmo o cooler correto e rumaram para a BR 116. Do outro lado da cidade Mayte ficou com a sensação de que por fim se casaria com o Ruivo, de quem amava o espírito aventureiro e aquele sobrenome, Ruivo, que desejava para si. Seu psicanalista, um neurologista chileno chamado Pablo e que afirmava não parecerem aqueles motivos suficientes para um casamento, sugeria contudo haver alguma projeção paterna nesse afã de incorporar o sobrenome Ruivo ao seu Naranjo, mas não atinava a modalidade da projeção. Como estivesse possuída pelas ideias de Sebastiano Timpanaro e até de Gilles Deleuze, suas idas ao psiquiatra se deviam também a um projeto de romance melodramático que a incitava há muito e que se passaria em um divã, sem que houvesse nenhuma motivação neuropatológica afora os remédios dos quais gostava com mais do que vontade e que, para não se arriscar ainda mais em bocas e lugares clandestinos, ela preferia adquirir com prescrição. O tal romance do divã, por certo, Mayte não lograva empreender de jeito nenhum e como justificativa aventava julgar ter mais respostas que perguntas para plasmar nas páginas em branco e isso era uma situação antitética ao experimentalismo que todo romance, segundo ela, devia pregar direta ou indiretamente para consolidar o avanço do gênero em relação aos desgastados modelos do Dezenove. Mas isso os professores presumiram, equivocadamente, que ela não dizia a ninguém. Naquele mesmo dia, logo que o dr. Pablo Alken fizesse recomendações acerca da necessidade de ela parar de fumar k2 em razão dos medicamentos que ingeria (ela afirmava só usar k2), depois de ouvir e admitir que talvez não conseguisse, esperou a fresca da tarde soprar para ir à Confeitaria Ateneu ouvir Carlo BBen cantar “Ligia” (Eu nunca sonhei com você/Nunca fui ao cinema/Não gosto de samba/Não vou a Ipanema…) e os baiões que ele atualizava, sorver devagar uma Brahma gelada e ingerir Havana Club em shots e pensar em voltar para o Recife e se casar lá por isso ou por aquilo… Depois, tudo indica que ligou para Arlete para informar que iria a sua casa porque estava muito ansiosa. É provável que antes de deixar a Confeitaria Ateneu fora ao banheiro inalar kfd e fazer xixi.

Mayte mudou-se do Recife para cursar o mestrado em teatro inglês na Federal do Rio Grande (UFRG), em Natal, onde havia um professor britânico nativo, Ed Woo, considerado autoridade em Douglas Jerrold, autor de Black-Ey’d Susan, The Rent Day e The Factory Girl, suas obras preferidas. Não obstante a inegável capacidade do Sr.Woo, em face do nível geral do curso resolveu passar seus dias na biblioteca da instituição, onde desenvolvia sua dissertação em concomitância com o hábitos de elaborar um método em que utilizasse as redes sociais para compartilhar a série de irregularidades em que se incorria naquele programa, cujo coordenador, Renan Esquilo, eternizava-se no cargo e, a despeito de ser considerado um duvidoso gestor acadêmico, impunha com inexplicável êxito um terror administrativo que fazia quase todo o departamento fremir nervoso tão somente o vissem descer de seu Gordini e caminhar até a sua horrível sala no primeiro andar. O projeto de Mayte nas redes sociais consolidou-se em parceria com Arlete e sob o perfil Proantrax, lugar de enunciação a partir do qual conduziam as vultosas denúncias. Tornou-se um hobby mesmo depois de ambas lerem a inconclusa Ética de Spinosa e levarem a que o programa de Letras quase fosse desqualificado pelas agências de fomento e ela decidisse abandonar o curso de facto e dedicar-se ao livre pensamento, tamanha a fragilidade (Um homem livre não pensa em nada menos do que na morte e sua sapiência é uma meditação não da morte, mas da vida). Lembrou dessa passagem sem saber o motivo. Pediu ao coordenador que aceitasse suas faltas em razão de uma moléstia psiquiátrica comprovada com documentos, o que ele, meio enamorado da pernambucana e ignorante de sua sanha para com sua administração, pronto acatou. Acre, astuto, tacanho, arrolou condições burocráticas que encerravam ameaças. A mais contundente consistia em que ela deveria terminar a dissertação em cinco meses, caso contrário solicitaria interrupção da bolsa, talvez ressarcimento à união do adquirido até ali ou mesmo a jubilação. Mayte sabia que o quadro que ele pintou era todo feito com  tintas falsas.

Depois de uma noite bem movimentada na casa de Arlete, com direito a avanços significativos em seus projetos de desmantelamento e reabilitação do programa de Pós, foi deitar quando o sol sai no norte do país, às cinco da manhã, e naquela hora recebeu uma videochamada de Ruivo, mais ao norte ainda, que fingia acreditar que ela havia mesmo deixado todas as substâncias, para dizer que não pararam em Aracati e portanto já estavam em Fortaleza, na Av. Santos Dumont 1331, na frente da torre de escritórios do Shopping Del Paseo a esperar o funcionário da Universidade Federal do Ceará (UFC). Fábio Salvador Humm chegou apressado em sua Marajó bege, ouvindo Tracey Thorn (I miss you, like the deserts miss the rain…), com poucas palavras e um olhar ressabiado a conotar também uma espécie de vergonha, como se estivesse muito atrasado, como se percebesse que sentissem sua falta ainda que Albert devia estar descansando na Rural climatizada e Ruivo conversasse com o porteiro, quem, depois, tomou fotos dos três e lhes deu uma senha para entrar. Uma vez na sala 1207 da torre Humm foi ao banheiro e voltou com o rosto seco e limpo e o cabelo meio molhado e lambido. Ligou o ar condicionado e disse que faria um café para eles. Perguntou quem era o chofer e quem o acompanhante e se o Ruivo havia, em algum momento da viagem, mexido no cooler, nem que fosse na hora de dormir na parte de trás do carro. Ele disse que não, dormira pouco e sentado mesmo pois ficava apreensivo com a maneira em que Albert dirigia. Em menos de meia hora tomaram o café, Salvador Humm perguntou se Albert conduzia muito rapidamente, se a estrada tinha muitos buracos, e enquanto iam em direção ao elevador para descer, os rapazes advertiram como seu semblante resgatava a expressão de desconfiança ou vergonha quando ouviu Albert dizer em tom de orgulho o pouco tempo que levaram de Natal até Fortaleza. Mas foi quando Albert entregou o cooler para Humm que ele arrematou sua performance ultraneurótica com uma meticulosa revisão do exterior da encomenda, mesma que logo colocou no porta-malas do Marajó em meio a milhares de bolinhas de isopor que preenchiam todo o espaço como espuma sobre água que amorteceria qualquer movimento do cooler. Uma vez a sós de novo, Albert e Ruivo pareciam exprimir certa perplexidade com a brevidade da sequência, do encontro com Humm, do som de Tracey Thorn, até o café expresso na sala da torre do shopping, até entregarem o cooler e verem o Marajó virar um ponto na extensão da Santos Dumont vazia e o som de Tracey Thorn se tornar um eco melódico em suas mentes. Rompendo o silêncio seguinte, Albert disse que aproveitaria a semana livre para ir a Jericoacara, mas o Ruivo podia ficar com a Rural e voltar para a casa de Mayte com ele e depois entregá-lo na UFP.  Ruivo disse que preferiria ficar aquela noite em Fortaleza para conhecer o tal Silas, um velho amigo de Albert e membro da elite cearense que nas palavras do jovem os levaria aos melhores lugares da cidade para a despedida de solteiro de Ruivo.

Ainda segundo a livre versão dos professores de jornalismo que conversavam no A esquina do mundo acerca da jornada dos rapazes nos últimos dois dias antes dos eventos

 

  • na Sinagoga Kahal Zur Israel,
  • na Facultad de Ciencias Sociales de Buenos Aires (FCSUBA),
  • na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU-UNB),
  • no Centro de Humanidades da Universidade Federal do Rio Grande (CHUFRG),
  • e na Mesquita Aylmer de Jeri,

 

…depois que o Silas os apresentasse o lendário 2020 de Fortaleza e não quisesse ir embora sem comer a segunda garota, uma sósia da atriz ibero-britânica Shekir Mos, o Ruivo despediu-se dos amigos e voltou a pé para o hotel, parando apenas para apreciar uma casa branca, modernista, com azulejos azul claro e espremida entre arranha-céus na avenida Barão de Studart. Recordou que ao chegarem havia visto outras como aquela, não muitas, e pensara que em breve haveria ainda menos, nenhuma. Notou uma caçamba de entulhos em frente da casa, o que podia confirmar sua antevisão, e aproveitou o que restava do caminho para apostar consigo mesmo que, até chegar ao hotel, não mais encontraria outra casa de qualquer estilo e período em todo o caminho. Ganha a aposta e sem dormir, saiu da cidade pela CE040 com a Rural a 80 km/h. Da janela, primeiro viu fábricas, depois olarias e carvoarias, depois alguma plantação variada, gado caprino, perdeu-se em Limoeiro do Norte, Russas, uma serra, muitos animais mortos na estrada. Ao passar por Canoa Quebrada, ouvindo um álbum de The Specials que Albert havia deixado no carro junto com o dvd de Geraldinho Lins, resolveu dormir um pouco e tomar o café de graça na pousada do Gennaro, uma encarnação histriônica de mafioso que vivia há 20 anos no lugar e que ele conhecia bem, pois fora companheiro de pôquer de seu pai e arquiteto como ele. Corre a lenda que o homem antes havia fixado residência em Natal, onde se uniu com napolitanos, sicilianos e portugueses para tentarem construir um shopping e, por tabela, organizar o jogo do bicho, o tráfico de drogas e a prostituição, sem êxito em nenhuma das ações. Cerca de 11h, ainda em jejum, provavelmente fumou um baseado com o italiano, deu um mergulho, tomou um suco de laranja, comeu dois pães de água com manteiga e queijo de cabra do Cariri e voltou para a CE040 a fim de ir para a cidade de Aracati. Ali tiraria umas fotos de uma fábrica têxtil que ele conhecera quando viajava com a família na infância e que lhe chamara a atenção pelo tamanho e longevidade. Se há quinze anos funcionava em ritmo de agonia, no século XIX havia sido uma das principais processadoras de tecidos de algodão do nordeste e responsável por internacionalizar, via City londrina, a matéria prima cearense. Quando deparou os portões da fábrica fechados e o muro já bem arruinado foi assaltado por imagens de toalhas de mesa e cortinas britânicas encardidas, puídas, a adornarem casarões vetustos. Almoçou peixe frito com bolinho de tapioca no mercado da rua cel. Alexandrino e talvez tenha voltado para a estrada cantarolando trechos dos sambas de Patativa que a maranhense da barraca que cozinhara a iguaria ainda tem o gosto de ouvir e cantar (Bote a trocha na cabeça/ não me aborreça/ vai andar). Ao sair da cidade deu carona a um casal de jovens bugres com nomes que soavam estrangeiros, Ciclap e Fava, que se diziam namorados, muito embora Ciclap parecesse lésbica e Fava nitidamente não deixasse de mirar entre as pernas de Ruivo, que se divertia bastante com a circunstância e a associava àquele filme antigo que assistira com seu pai, cujo título… À tardinha, já na discreta subida para Caiçara dos Ventos, a Rural voltou a ter problemas no rolamento obrigando-lhe a fazer uma intervenção que duraria aquela tarde, a noite e metade do outro dia. Albert se instalava em Jeri quando se comunicou e o Ruivo fez o informe e finalizou ultrajando verbalmente bastante a Rural. Albert surpreendeu-se com algo e mencionou que tinha acabado de ver o Marajó bege de Humm passar e direcionou o celular para tentar mostrar a Ruivo que, como da outra vez, ele ouvia Tracey Thorn. Com efeito, juntos puderam repetir a imagem do Marajó se tornar um ponto negro distante a se perder entre o vapor tórrido agora emitido pelo asfalto vespertino do norte brasileiro. Especula-se que Albert cogitou que o maluco podia estar atrás dele. Revelou estar meio desapontado porque parecia não haver condições para surfar e porque ali só tinha mulher casada, mulher feia, mulher velha, e muitos grupos de estrangeiras fazendo turismo sexual. Divertindo-se, quase assustado, mostrou ao Ruivo pela câmera do celular a célere volta do carro de Salvador Humm, a aproximação da voz de Tracey Thorn, a manobra para estacionar, a saída do pequeno homem do Marajó ao som de Like the deserts miss the rain, vestindo shorts justos e curtos, regata preta, tênis pretos com meias brancas. Viram-no bater a porta, emudecendo a cantora, viram quando levantou o braço direito em que, no ombro, tinha a tatuagem de Barbra Streisand deitada em um caixão e viram, incrédulos, quando ele mostrou o dedo médio para o Albert e o Ruivo, que gargalharam da sequência. Talvez em menos de quinze segundos de tudo isso ele entrou na Conveniência Sarracena do posto de gasolina BR geminada à grande mesquita Aylmer. De pronto, em simetria, a imagem desaparece e Ruivo se assusta com um estrondo abafado, também crê ouvir gritos, mas reparou ser apenas o mecânico pisando muito forte no acelerador da Rural parada ao mesmo tempo em que na calçada da frente duas senhoras riam alto sob o alpendre de uma casa.

No dia seguinte acordou cedo e ficou na rede estendida na varanda do hotel fruindo a sua frente a longa caatinga a se tornar o horizonte. Considerou que devia haver caça de tatu, de coelhos, de papa-capim e azulão por ali e, talvez como extensão do lance das toalhas inglesas, associou o arranjo visual que fitava com algum filme em que beagles corriam atrás de lebres. Deixou o hotel e ao invés de se comunicar com Mayte tentou pegar logo a BR116, mas uma grei de adolescentes a saírem de uma festa de RPG o interrompeu, passando em coorte diante do automóvel com a autoridade de um movimento social imbuído do direito de se manifestar publicamente, suscitando, entretanto, um tipo de experiência que Ruivo só tivera em museus, teatros, cinemas, ficção literária ou games. Um garoto vestido de Torume Aburame chegou a subir no para-choques da Rural, retirar com um movimento marcial uma de suas capas, mirá-lo com certa raiva melancólica e, em seguida, dar de ombros e se unir à turma. Quando ao fim se desembaraçou da galáxia cosplay, na saída da cidade cujo chão ainda era de paralelepípedos, uma blitz parava carro sim e carro não. Ao passar pelos policiais advertiu a existência de muitos agentes da Federal entre os guardas rodoviários e pensou no baseado que Gennaro lhe havia dado junto com um cd de Neil Young. Abriu o porta luvas, viu o baseado de k2 e pegou o cd para ouvi-lo. Checou seu celular e advertiu que estava sem sinal. Quando começou a tocar Mellow my mind, acendeu o baseado, diminuiu a velocidade e já no segundo puxão desfrutou do então inédito azul do céu, mas também pensou na imagem de Mayte deitada de string na cor rosa, e ainda notou o incremento da sua capacidade para seguir a letra da música (Baby mellow my mind/Make me feel/Like a school boy on good time/Jugglin’ nickels and dimes/Satisfied with the fish on the line). Quando ia guardar a ponta, vislumbrou 300 metros adiante um conjunto de luzes vermelhas, azuis e brancas alternando-se na sinalização do perigo. Abriu as janelas do carro, jogou a ponta fora, trocou os óculos polarizados por um par espelhado e ao diminuir ainda mais a velocidade configuraram-se blitz e medo ao mesmo tempo. Ao ter de encostar, perguntaram-lhe de onde vinha, tudo indica que respondeu de Caiçara do Rio dos Ventos, reconhecido ponto de esportes radicais do nordeste, portanto apenas lhe pediram a documentação de praxe, deram uma olhada superficial no interior da Rural e o deixaram ir. Aliviado mas tenso ouviu ininterruptamente Mellow my mind durante as duas horas de viagem até São José de Mipibu onde sem saber dormiria as duas noites seguintes. Antes, passou sorrindo por Riachuelo, onde recordou de um forró muito bom que uma vez fora com seu irmão no Bar das Coroas. Coisa fina, com trio de senhores músicos e ambiente camponês.

Os professores de jornalismo iam para a quarta rodada de whisky quando afirmaram que Mayte não fora atingida na explosão, mas Arlete permanecia grave no hospital, com queimaduras de segundo grau nas pernas. Renan Esquilo falecera mirando o busto de Dante Alighieri que havia na entrada da Faculdade de Letras no CH e de acordo com informações da polícia sua atitude ao momento da explosão era de quem estava ao telefone. Ruivo não conseguira entrar na cidade naquele dia devido ao estado de exceção ali impetrado pela polícia, que parecia cercar todos os seus limites em parceria com as forças armadas, o que ele mentalizou como um mapa de papel com um círculo riscado a pincel atômico a sinalizar Natal como um lugar sitiado. Dois dias depois, Ruivo deixou o hotel de São José de Mipibú e infiltrou-se em Natal pela Zona Norte, menos vigiada, mas teve de ir a Touros antes, uma vez que o exército improvisara uma rota de acesso que partia dali para aquelas pessoas que, de transporte particular, queriam voltar a suas casas na Zona Sul da cidade. Todos os carros eram registrados na prefeitura da cidade de Touros depois de pagar a soma de cem reais. Tomou água no A esquina do mundo, mas não percebeu os professores lá sentados porque, depois de uma viagem interiorana, foi logo fitar o mar a oferecer suas rotas. Passou pela ponte Newton Navarro com soldados do exército dos dois lados e já na Ribeira dirigiu-se ao centro, à igreja do Galo, aberta, vazia, ecoando o vento do Potengi que logo ali embaixo corre caudaloso. Persignou-se, mas não sabia se agradecer ou solicitar graça. Com um receio ignorante, foi para a casa de Browna Lin que ficava na calçada do outro lado da igreja. Browna era uma amiga de Arlete que havia morado em Seattle, com quem ele, Mayte e Arlete às vezes iam aos jogos do ABC e do América no Arena das Dunas ou no Frasqueirão, conforme a tabela, uma vez que ela era filha do presidente da Federação de Futebol do estado. Sem internet e com a tv e o rádio com informações ainda mais controladas, soube por Browna que houvera uma série de atentados ainda sem autoria reivindicada que alvejaram a Kahal Zur Israel, a FCSUBA, a FAU-UNB, o CHUFRG e a mesquita Aylmer, de onde Albert ligara três dias atrás. Decerto lá, naquele preciso momento, dentro dos escombros que uniam a Conveniência Sarracena com a mesquita Aylmer, achavam um pedaço do ombro de Fábio Salvador Humm, reconhecido devido a uma parte da imagem de Barbra Streisand emoldurada por fragmentos do caixão tal qual o segmento de uma instalação, sobre uma poça de sangue coagulado com cimento e pedaços de materiais diversos. Chegou ao apartamento de Mayte, deu-lhe um beijo na face e depois de ela chorar convulsivamente foram enrolar um baseado na varanda com uma seda Rizla + que ele disse, usando uma afetação própria dela, como para animá-la, reza o mito pós-imperialista, estas sedas também enrolavam o tabaco das colônias francesas e inglesas quando essa matéria prima começou a ser consumida assim, enrolada. The art of rolling. Ela mesmo diz que lhe contou o que sabia acerca dos atentados ao CH, que era quase nada, mas que de alguma forma errática se sentia culpada com aquilo tudo, mais ainda com o falecimento de Esquilo. Deixaram o apartamento e foram para a UFRG. Viram as ruínas do prédio cor de goiaba, nacos das paredes grafitadas da sala do coordenador da Filosofia, um artista plástico boliviano que também tinha um programa de tv e cuja especialidade era Leibniz. Caminharam até o setor II, onde estão as salas de aula do CH e viram alguns conhecidos de Mayte a perambular por ali como sempre: a rastafari americana; o sósia do Che Guevara de chinelos de dedo da marca Havaianas; Meche, uma chilena ex-guerrilheira que editava a revista de contracultura mais importante da cidade, O sequestro das letras; Rotchis, uma mexicana muito simpática para quem a expressão minha nossa! e a palavra macoja (corruptela de maconha) bastavam para suas necessidades com o idioma local; e Benjamin, um poeta talentoso com quem conversavam enquanto ele pregava um cartaz de uma manifestação pacifista em repúdio aos atentados que aconteceria na próxima terça. Pararam ainda para inconscientemente fazer uma espécie de comparação entre a instalação dos 43 mortos em Ayotzinapa, Guerrero, México, cujas fotos colocadas em uma tela de arame já se desintegravam com a ação do vento e os escombros do CH que se viam a partir dali. Em seguida, dirigiram-se ao Hospital dos Pescadores, onde Arlete estava internada, com a Rural fazendo um barulho estranho que Ruivo intuiu ser o rolamento outra vez. No caminho, ele viu um edifício com o estilo do modernismo tardio, vinculado a pastiches e variações futuristas muito comuns nas cidades do país e que seria demolido, a antiga sede do América Futebol Clube na rua Prudente de Morais, que a despeito de tudo Ruivo opinava que deveria ser mantida como um manifesto da força das formas. Foi então, diante da previsão das ruínas em que se tornariam tal edifício, que Ruivo teve uma só imagem dos três ou quatro lugares que visitara com Albert, acrescentando logo a ideia de pessoas mortas, feridas, cogitou ouvir gritos. A poeira e a fumaça imaginárias chegaram a embaçar sua visão, mas não comentou nada com sua noiva, ainda bastante amuada por conta da culpa e de Arlete. Aviões hipersônicos da base aérea nacional que estava situada ali desde a Segunda Guerra sobrevoaram a região naquele momento.

Quando chegaram e estacionaram no Hospital dos Pescadores logo se viram cercados de carros da polícia Civil e Federal. Os agentes dirigiram seus esforços de aproximação e dissuasão a Mayte, que de imediato foi levada a uma sala revestida de azulejo azul claro no subterrâneo da instituição. Lá ela foi indagada acerca de suas atividades nas redes sociais, seus vínculos com Arlete, seu abuso de drogas, e o que sabia das atividades de Ruivo e Albert. Falou quase toda a verdade em relação a Arlete e às redes sociais, mas o choro espasmódico parecia também passar-lhe uma mensagem de que talvez devesse escamotear algo, contar um pouco e parar, contar mais um pouco e parar. Do Ruivo referiu sua infância e adolescência com ele, cujos pais moravam na mesma rua dela na Boa Vista. Como ele fora estudar os últimos anos do ensino médio em São Paulo e na Califórnia, separaram-se um tempo. Antes de ela terminar a faculdade de letras e de ele entrar para o setor de transportes da Universidade Federal de Pernambuco (UFP), ambos haviam embarcado em pequenas aventuras semiprofissionais, foram atores de teatro (momento em que ela descobriu Douglas Jerrold) e artesãos de bijuterias. Nenhuma das empresas funcionou, na opinião de Mayte, porque o Ruivo preferia surfar, sair para beber, tocar bateria no grupo The innocents by Jack Clayton, cujo líder era um judeu com nome de apóstolo, Pablo Auslander, que morava no Pina, próximo de outro grande amigo de Ruivo, precisamente, Albert. Enfim, ela garantiu sem muita convicção, adiantando que alguma coisa poderia obter da indeterminação, que ele tinha uma vida bastante corriqueira para um jovem revoltado por sentir estar às margens do mundo e ignorar que pouco importava o lugar em que estivesse pois era a margem que estava nele. Filosofou para comover, mas também perturbar. Do lado de fora Ruivo inquietava-se com o súbito aumento de policiais masculinos e previu que Mayte poderia comentar alguma coisa acerca do seu trabalho que ele preferia não revelar agora, talvez porque tampouco sabia o que podia ser. Quando mesmo assim a policial alta quis detalhes acerca do grupo e chegou a sorrir do judeu com nome de santo/apóstolo, a agente gorda a interrompeu e conduziu a inquirição para a via dos entorpecentes e a uniu, por azares dedutivos,  ao cognome antrax, Proantrax, esboçando um interesse pelas atividades da banda, uma composição social sempre envolvida com drogas e badernas, lugar da conversa em que Mayte com efeito encontrou um sinal de que as coisas podiam piorar para ela. Hesitante, Mayte até pensou em declarar que Ruivo não tinha vícios e assim interromper o aprofundamento acerca de seus próprios vícios, a respeito de suas noites em concubinato justiceiro com Arlete e os efeitos de kfd alardeados como um dos fatores de seu discurso quase anarquista, meio terrorista, quem sabe, pensou a policial magra. Mas o que fez foi afirmar sempre ter achado o emprego de Ruivo muito estranho, seus relatos de idas e vindas, leva e traz de insondáveis isopores amarelos a lugares os mais diversos. A despeito dessa infortunada declaração, tão somente aí, entre uma, em princípio, falsa apelação, Mayte viu caracterizarem-se certezas acerca das rotas do noivo e a possibilidade de algum tipo de tráfico ou de transgressão de qualquer sorte no serviço de Ruivo e Albert, tudo isso iluminado pela conveniência desses dados agora estarem sob o estatuto do talvez, verificável. Antes mesmo de ver Arlete, apreensivo com o confinamento de Mayte, Ruivo aproveitou uma súbita redução no número de agentes no estacionamento e foi até a Rural, apanhou a mochila, o resto de k2, os pen drives e cds e saiu para pegar um taxi na frente do hospital.

Quase um mês adiante, logo que Mayte e Arlete estivessem em todos os noticiários por conta de suas atividades de desprestígio do Programa de Pós, uma espécie de pauta colateral adotada pela imprensa para complementar o protagonismo dos atentados ou para atenuá-lo, vá saber, Ruivo ganhou o apelido de Galinho pela comunidade local, incluindo os estrangeiros e principalmente os coreanos que povoam Canoa Quebrada e arredores. Sonolento pela grande quantidade de k2 que Gennaro lhe ofereceu à guisa de terapia desde sua chegada, certa feita tornou-se por decreto do capo amável o secretário geral da Associação de Esportes Radicais do Nordeste (AERN), escanteando um sueco vegano que há tempos fazia uma administração insípida. Mas sua ideia era não utilizar dispositivos móveis, ao menos que não partisse dele qualquer mensagem, mas ir até Natal falar com Mayte ou mesmo até Jeri conferir se Albert ainda estava lá e perguntar o que de fato tinha acontecido e o que fariam agora. Como o surfe em Canoa também era escasso, aprendeu a gladear em parapente e em dois meses se tornou instrutor de um grupo de adolescentes de até 14 anos da colônia de férias que projetara para a Associação. Uma tarde, antes das atividades noturnas com os integrantes da colônia, no dia em que iam a uma gruta ver os famosos morcegos locais, com o céu alaranjado do início do crepúsculo do verão cearense, tomou um ácido azedo que o sueco deixara na gaveta e saltou da rampa Dragão do Mar para fotografar a Vila do Estêvão, as falésias e a lagoa, ainda que acabou preferindo divisar e sentir o horizonte se transformar por fora e por dentro. Isso até perceber ao longe as crianças da colônia de férias vibrando de alegria à beira da rampa, algumas parecendo andar sobre o nada e mesmo sentir, indiferentes, o bafo do precipício.  Naquele momento nada lhes reduzia o ânimo de estimular as manobras do seu heroico instrutor. Isso até Ruivo perceber a vibração do celular e atender a Albert, que em pleno serviço no departamento de transportes da UFP lhe diz que a Rural já estava lá com ele, que Mayte e Arlete estavam ainda sob custódia e que ele tinha de voltar ao trabalho logo, deixar de ser vagabundo porque a banda continuava queimando tudo até a última ponta. Rindo uma alegria pirada, com cores a mais e a menos, mostrou ao amigo onde estava e enquanto Albert exclamava uma ruma de tropos  (uau, véi, há, carái, chupa, puta que o pariu, massa, galago !!!!!!!!!!!), Ruivo interrompeu sua disparada poética e informou que não mais voltaria pois havia assumido o cargo de diretor da Associação de Esportes Radicais do Nordeste e namorava uma nativa bem linda, bartender de uma boate na Broadway. Planando em front stall com um vento mais forte, despedem-se com a promessa de que Albert o visitaria um desses dias para voar com ele. Ruivo voltou a colocar o celular-rádio no cinto, perto da faca, e puxou as cordas para baixar um pouco e percebeu o aparelho vibrar precisamente quando fez um wingover de 90 graus para retornar e começar as atividades noturnas com a molecada. Ao conseguir atender a chamada de Mayte, ao verem-se por um instante nos ambientes em que estavam, Ruivo sentiu um leve frêmito que se acentuou no rosto com a ação do vento entrando pelo capacete, descendo pelo pescoço, pelo braço, até chegar a sua mão e obrigar-lhe a realizar um movimento equivocado e provocar a queda do celular no oceano Atlântico de uma altura de 20 metros e a 600 pés da praia dos Estêvão. Logo em seguida, Ruivo tirou o capacete, as botas, as luvas, os óculos, soltou as travas dos cintos, liberou o arnês, desatou o paraquedas sobressalente e se deixou cair livremente no mar, que já havia adquirido a cor cinza dos espelhos. Enquanto as ondas tentavam, inexatas, refletir as tonalidades do parapente ejetado que se apartava da costa com a ação de um vácuo de ventania Nordeste, as crianças pareciam atônitas e não deixavam de pular e correr de um lado para o outro para celebrar o bravo, ainda mesmo antes de ele submergir e recuperar o celular-rádio à prova d’água que, segundo o menino Hea-Jung cria ver com seus binóculos, já estava boiando. Se é certo que a apoteose instalava-se uníssona entre os pequenos, ao fundo um casal de turistas adolescentes reparava que o pôr do sol coincidia no horizonte com nuvens que, em perspectiva, sugeriam combates épicos, tipo os de Battle Royale.

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Albano da Costa é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Seus últimos livros são A imaginação revolucionária: Política, cinema e literatura no México (Annablume, 2011) e Continente e conteúdo. Mídia e sociedade na América Latina (Sulina, 2014). Tem um romance e dois livros de contos na gaveta que pretende publicar em breve

 

 

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