* Por Leonardo Campos *

Observamos com alguma regularidade, em outros gêneros textuais, autores que já trataram do tema caos x ordem. Porém, representar esse conceito no ramo da literatura demanda, além da complexidade que circunda toda a temática, sensibilidade e (re)criação semântica constante no labor com as palavras.

E esses requisitos, Ronaldo Cagiano, no seu livro Observatório do caos, apresentou com maestria, sensibilidade e consistente propriedade lexical.

Nos versos de sua obra, o poeta demonstra não apenas ser um astuto observador da realidade, mas um cocriador do caos, tendo a memória como força propulsora e a palavra como matéria-prima a compor as várias camadas do caos.

Detentor de uma memória singular e de uma palavra precisa, Ronaldo Cagiano faz uso de uma poesia sem véus e disfarces, desnuda de qualquer fantasia apaziguadora da realidade. Nesta toada, as lembranças funcionam para o poeta como um gatilho para a ordem x desordem das coisas, como fazia Clarice Lispector e o seu fluxo de consciência desmedido. Assim, podemos conferir esse recurso linguístico no fragmento da poesia:

Hermenêutica

A escuridão que veste a cidade

Os destroços da última briga

A rotina desgastante dos bancários

A anestésica pregação dos pastores eletrônicos

A fé demencial dos evangélicos

O carrossel de denúncias políticas […]   p.35

 

Acontecimentos e situações habitados por cenas velozes, passando como flashes numa poética de versos eufóricos e alucinantes, dando a conhecer o caos citadino, profissional, religioso e político que pululam sem controle por nossas vidas. E sentirmos toda essa desordem somatizar em nossa carne os sintomas de uma sociedade desumana, em que a selvageria não nos chega armada com arco e flecha, nem vestida de armaduras medievais, mas transvestida de terno, interligada por celulares e sorrisos gratuitos.

A proposta de Ronaldo Cagiano é nos mostrar e alertar sobre a áspera natureza do caos que, para ele, não habita o nível do inconsciente como acontece com a maioria de nós. Para tanto, o poeta demonstra que a realidade caótica, além de fazer morada em seu interior, habita, em forma de memória crônica, o seu nascimento, estendendo-se ao ambiente geográfico de sua cidade natal, bem como do Brasil e do restante do mundo.

No poema “Autorretrato” nos deparamos com as águas do ribeirão Meia-Pataca, de sua cidade natal, Cataguases, extravasada de seu leito como propulsora do caos.

 

Autorretrato

Nasci empurrado pelas águas

De um ribeirão em fúria

Numa madrugada espúria

Com sua opulência de gritos,

Abril se despedaçando […]   p.39

 

No fragmento seguinte do poema “Noturno”, na descrição da cidade de São Paulo, onde viveu o poeta por uma década, vemos a geografia de gentes como o caos essencial que configura a Metrópole:

Noturno

A cidade é essa hera

É um presépio de multidões bovinas

Sob relâmpagos difusos na sisudez do asfalto. […]   p.141

E chega à Roma o caos do poeta, como conferimos nos seguintes versos:

À margem do Tibre

Há outros impérios a ruir

Enquanto a primavera não chega

Nesse janeiro de intempéries

Nesse rio de sarças ardentes […]   p. 99

Na poética de Cagiano, o resultado do caos emocional por que passam muitas pessoas também é visitado. Não poderia, na sua investigação e reflexão desse estar de coisas, deixar de demonstrar esse reflexo com as suas chagas a se manifestar na paisagem de um sol febril e disforme:

 

Insularidade

A memória das coisas

Não acompanha o andarilho

Que hoje bateu à nossa porta.

 

Com ele a nostalgia dos dias

E a notícia de tardes morimbudas

Com sóis hemorrágicos sobre as colinas. […]   p.23

 

Note, na 2ª estrofe, que a memória de “antes” transforma-se em energia latente a qual transfigura-se na própria paisagem com seu entardecer desolador, como uma espécie de subproduto do caos. É o caos e as suas camadas.

O engajamento social norteado pela crítica pontual e perspicaz também é característica da poética de Ronaldo Cagiano, como, por exemplo, podemos observar em:

 

Sierra Maestria

Já não se fazem revoluções

Como antigamente

Nesse tempo de ilusões famintas

E utopias sem destino.

 

Um duelo terrorista contra o nada.   p.25

 

Percebemos nos versos acima a descrição do cenário atual do planeta em que terroristas matam, tiram vidas inocentes, amparados apenas por um sonho religioso.

Lindo labor poético observamos nos versos de “Velhice”, onde com pericia lexical e sensibilidade o poeta coloca o tempo como escultor do próprio ato de envelhecer, que tudo definha, usando para isso uma linguagem acentuada e desnuda de alegorias amenas.

 

Velhice

O tempo deixa suas digitais de horror

Na epiderme prenhe de rugas.

[…]

Ante virgem e indevassada,

Agora a pele calcinada

Lembra a terra arrasada por incêndio.   p. 44

 

No poema “O Barbeiro”, com precisão estética e tom observador, Ronaldo Cagiano alia o ofício da barbearia, presente no ambiente de sua infância, com reflexões existenciais dotadas de uma linguagem viva e expressiva, como se nota no recurso metonímico seguinte:

 

O barbeiro

… no bailar da lâmina

Desbasta o jardim de pelos

Corrige

As voçorocas da pele.

De quantas faces

É construída a sua vida?   P.74

 

O eu-lírico, no poema “O barbeiro”, sabe reconstruir com palavras dotadas de recursos expressivos o ofício da barbearia, acrescentando ao final da sua criação uma atmosfera norteada por questões existencialistas.

O processo de metalinguagem é visitado pelo poeta como também o fizeram nomes como João Cabral de Melo Neto, Olavo Bilac, Fernando Pessoa, Mário Quintana, entre outros. E nesse processo, vem-nos a metáfora da folha de papel representada pelo “deserto branco da página”, essa matéria-prima que compõe o árduo ofício do poeta.

 

Ócios do ofício

A difícil travessia

Do deserto branco da página

E a trágica empunhadura

De um lápis

Na fadiga dos dedos

Justificam a insônia

Que alimenta a procura

Enquanto o poema

Não vem.   P.119

 

Tarefa

Poesia contra antipoesia

Da imensa solidão que insulariza

E no deserto rude e branco do papel

Todo esplendor de voraz

Inquietação. p. 132

 

Ao vermos o processo caótico de metalinguagem ao final da poesia “Tarefa”, refletindo sobre o próprio fazer poético, percebe-se que o Observatório do caos, de Ronaldo Cagiano, considera o mundo, a vida em si e nossas relações sociais um processo onde o caos habita inevitavelmente, talvez como processo para a nossa evolução, quiçá, involução.

Poesia contra antipoesia

Na antítese do verso anterior, do poema Tarefa, uma luta se trava para que o equilíbrio seja alcançado. Porém, a poesia de Cagiano, alcançado o equilíbrio ou não das coisas, surgirá sempre desse caos que nos rodeia, mesmo que o ponto de vista do leitor não permita que ele tenha consciência do movimento frenético por que passa a natureza, a vida e todas as suas formas de manifestações.

O caos faz parte do processo criador do poeta e do mundo e, a duras penas, nos atribuem experiência. Na revelação feita pelo poema seguinte, os pássaros, através de seu regozijo, parecem externar uma camada desse caos numa forma de canto libertador.

 

Regozijo dos pássaros

Lá fora

Os pardais algaraviam nas árvores.

 

Em sua energia e disposição

Para espantar os males,

Espoliam a realidade que vem do noticiário. p.47

 

Nota-se a percepção do eu-lírico que, ao decodificar o cantarolar dos pardais, pressenti a estrutura caótica da realidade digerida e espoliada na expressão do canto.

No caos mundano que cria e recria Ronaldo Cagiano, nenhuma esfera da sociedade sai imune. O poeta, no seu olhar aguçado, na sua memória ativa, não se enverga em tecer sua crítica às religiões ortodoxas e a seus cultos fanatizados, ao cenário político do Brasil e do mundo e às lembranças de sua cidade natal.

O sentimento do caos que habita o labor literário do eu-lírico de Observatório do caos segue sem trégua, dando assim unidade à obra, ganhando forma a cada poema, nos trazendo uma realidade que, queiramos ou não, faz parte de nossas vidas, por mais que usemos de uma visão míope para disfarçá-la. E o amanhã ressurgirá sempre, banhado pelas mesmas substancias do hoje, muitas não resolvidas por nós ou pela sociedade. Observa-se muito bem essas impressões nos versos do poema “Decreto”:

 

Somos derrotados no ventre escuro da noite

Vencidos pelas verdades

Que ainda vão nascer. p. 104

 

Constata-se nos versos acima que a promessa do dia seguinte sempre anuncia a continuidade do caos.

Mas, se há um caminho para a liberdade absoluta, se há uma rota de fuga para a caotização da realidade, talvez o poema MEMENTO MORI traga, em sua essência, essa resposta.

MEMENTO MORI

A vida,

Ávida ave

Voou.    p.160

 

Enfim, a morte, como libertação desse caos?

*

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Observatório do caos, de Ronaldo Cagiano (Patuá, 184 págs.)

Leonardo Campos é professor de Literatura e Língua Portuguesa, escritor e crítico, autor de Alma de brinquedo (Poesia), reside em Cataguases (MG)

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