* Por Sérgio Tavares*

Aos 30 anos, Pedro é um cineasta de reconhecido talento para uma longa carreira de sucesso. Mantém um relacionamento estável com Clara, diverte-se com amigos e registra suas viagens nas redes sociais. O apartamento em que mora sozinho fica num bairro aprazível, onde desenvolve seus projetos e compartilha planos para o futuro.

Até que, no final da tarde de um dia comum, ele abre a janela e se lança no vazio do alto do 11º andar.

O suicídio de Pedro é o ponto de partida de Crocodilo, romance de Javier Arancibia Contreras. Um relato sensível ao mesmo tempo que diligente sobre como um ato desconcertante repercute na vida das pessoas próximas, sobretudo na dos pais; aqui, Marta, uma ex-editora de livros, e Ruy, um velho jornalista ainda na ativa.

Embrulhados pelo luto, cada um irá reagir a sua maneira à morte do único filho. Enquanto a mãe se recolhe para processar a perda, o pai inicia uma busca por qualquer pista que esclareça o porquê de alguém sadio e de aparente felicidade de repente tirar a própria vida de uma forma tão brutal.

Naturalmente que, por mais desgastante que seja a procura, a pergunta sempre terá uma resposta indecifrável. A verdade está com quem partiu. E a investigação terá um impacto em que investiga, uma espécie de exorcismo da culpa em meio a arqueologia do plano em que existiu uma relação entre pai e filho.

Contreras estrutura o livro em capítulos que abrangem uma semana, do momento da morte até a missa de sétimo dia. O fluxo narrativo se articula entre o desenrolar dos fatos presentes e recuos no tempo, onde lembranças são acessadas de modo a resgatar cenas que caracterizem os atores da trama e deem forma a um universo familiar.

Pedro é o personagem de interesse, porém é Ruy quem narra, daí o movimento do enredo seguir seus comandos.

Sua jornada pelos campos da memória passa pelo início do casamento com Marta, uma mulher 10 anos mais nova; as gestações fracassadas que antecederam Pedro, e tiveram um efeito quase demolidor no casamento; e a gravidez de Pedro que lhe trouxe incerteza quanto ao desejo da paternidade, por já ser um homem com mais de 40 anos.

Além disso, Ruy visita seu período de exílio político durante do regime militar brasileiro, e os primeiros contatos do filho com uma câmera de filmagem VHS, nos quais revive uma série de gravações, entre as quais uma circunstância específica que faz referência direta ao título do romance.

Na coleta de informações para (tentar) entender quem se tornou o filho, o narrador vasculha o apartamento desabitado, conversa com um amigo, interroga a namorada. Contudo, suas andanças para chegar ao outro o levam cada vez mais ao encontro de si. Das falhas que cultivou no relacionamento com o filho, da necessidade de agora ressignificar a condição de pai para a de pai de um filho morto. O que passa a ser este homem? Qual definição para a paternidade a morte do filho impõe?

Eu, neste momento, não sou mais pai de ninguém. A morte de Pedro significa também a minha morte como pai, conclui.

Contreras entrega um drama que sintoniza uma modulação detetivesca, mas nunca deixa de ser um drama em sua convenção literária. Isso também vale quando incorpora ao texto certas licenças extraficcionais. Usando muitas vezes de diálogos entre personagens, o autor trata de equívocos e de contextos referentes ao suicídio, até de maneira didática.

Aborda o tabu que envolve o tema, o erro de se pensar que quem tira a própria vida é uma pessoa depressiva, de comportamento antissocial. Em dado momento, toca na discussão de como esse tipo de notícia repercute nas redes sociais e como a própria internet passou a ser uma influenciadora da crescente de casos.

Há um senão, porém, quando insere uma lista e informações técnicas no meio da trama que, embora atribua mais adiante a ação de um personagem, só servem para congestionar a fluência rítmica e angariar um mero efeito ilustrativo. Aliás, aos maus olhos, a lista pode ser interpretada como uma glorificação.

O bom é que o livro logo volta a sua narração característica, ressoando a voz angustiada do pai no decurso da jornada de inconformidade e desamparo, que culmina num capítulo final comovente, de dolorosa sensibilidade, certamente um dos melhores encerramentos entre os romances publicados neste ano.

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Crocodilo, de Javier Arancibia Contreras (editora Companhia das Letras, 182 páginas)

Avaliação: Bom

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Sérgio Tavares é escritor e crítico literário.

 

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