Crônica: Casais (1)

* Por Corinne Klomp *

A –

O que você está dizendo?

Nada.

O que você faz?

Nada.

No que você pensa?

Em nada.

Você está morto?

Estou, sim.

Ah, não sabia disso.

Eu também não.

Desculpa.

De nada.

B –

Tudo isso?! 90%?!

Sem pestanejar.

Eu não consigo.

Você não sabe o sabor que está perdendo.

Ah é?

Bom, confesso. A primeira tentativa surpreende. Mas quando você pega o jeito da coisa, um universo infinito se abre. Num gosto único, potente.

Já experimentei uma vez durante minha depressão.

Qual delas? A primeira ou a segunda?

A quinta.

Então, o experimento, como foi?

Achei duro pra burro. Amargo, ácido. Credo! Me deu até azia. Insistente, invasiva.

Afinal, qual é a sua concentração predileta?

Depende das circunstâncias. 50 ou 55%. No máximo 60%.

55% combina bem com você.

Exatamente! Já me dá um prazer intenso.

Anos atrás, fez sentido por um tempo mas me cansei logo. Após nosso divórcio, decidi me radicalizar.

Por quê?

Na verdade, nunca sonhei com uma vida açucarada, de cartão postal.

Isso piorou com o passar do tempo?

Piorou! Perdi o desejo de suavidade, de convivência. 90% oferece um equilíbrio ideal entre os meus dois lados: selvagem e social.

Bruta saudade do teu lado selvagem.

Eu sei, mas estou a guardá-lo só para mim.

Olha lá! Um dia vai acabar sozinhíssima…

Acho que não.

… com a concentração máxima: 100% de solidão! Nenhum rastro de socialibilidade.

Risco algum. Além disso, 90% me deixa uma margem de evolução.

Uma margem restrita, portanto uma oportunidade menor. Tem pouco espaço para você desenvolver uma relação qualquer.

Tem espaço bastante para eu cuidar de um gatinho. Pronto.

Quanto ao chocolate, você fez a mesma escolha de terror? Aliás, de teor?

Já se esqueceu disso? Desde criança, eu optei pelo chocolate ao leite. Bem cremoso.

A mim, me dá nojo. Só gosto do escuríssimo, tipo 90%. Aquele do Equador.

90%?!

É…

Fanático!

*

Corinne Klomp é autora francesa e mora em Paris, França. Escreve peças de teatro, roteiros (televisão e cinema), e ficções para a rádio francesa France Inter. Faz parte do Conselho de Administração da Sociedade de Compositores e Autores Dramáticos (SACD) do seu país. Tem grande paixão pelo Brasil e pela língua portuguesa. Começou a aprendê-la ao fim do 2014, depois de ter dado sua segunda oficina de roteiros, no Rio de janeiro, no Festival Varilux do Cinema Francês. Desde então escreve crônicas e contos em português

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