* Por Marcelo Maluf *

E se a palavra não bastar?

Mas nós sabemos que a palavra não será o suficiente.

Nunca foi o suficiente o canto da Elis Regina, a dança da Pina Bausch, a pintura de Francisco de Goya, as performances de Abramovic, os poemas de Drummond. Vidas Secas, do Graciliano, nunca foi o suficiente, nunca foi o bastante, nunca saciou a nossa sede a Água Viva, de Clarice. Nunca chegaram ao fim os Sonhos,do Kurosawa, nem nunca pudemos recuperar o fôlego com o Respire Comigo, da Lygia Clark.

Talvez seja por isso que sempre imaginamos novos voos, outras palavras, clandestinas danças, cantos e vidas. Isso tudo nós sempre soubemos. E nunca estivemos com medo de que a arte não fosse o suficiente para nos dar abrigo e sentido. Há coisas que vibram em nós que vão para além daquilo que possa bastar. Nosso destino como artistas e humanos é estarmos vivos e incomodados, vivos e encantados. Está lá no Apocalipse que os mornos serão vomitados.

Mas e se, para além da arte, a vida não bastar?

Como se não bastasse, eles ainda querem nos ferir.

Essa gente estúpida, com seu ódio estúpido, suas ideias estúpidas.

Então, eles irão nos ferir. E daí? Ganharemos cicatrizes. Mas nós sempre teremos ao lado quem possa cuidar das nossas feridas. Eu posso cuidar da sua chaga. Você pode cuidar da minha. E nós iremos sorrir ao fazer os curativos. Nós sabemos sorrir. Nós sorriremos com intimidade. Qualquer abraço é um sonho que nasce. Levantaremos. Arreganharemos os dentes. Encantados ainda com a vida. Eles não gostam da nossa felicidade. Eles não gostam da nossa alegria. Eles não gostam dos nossos dentes escancarados. Eles não gostam da nossa beleza. E se quebrarem os nossos dentes? Banguelas, nós ainda iremos sorrir ao sentir o vento invadindo a janela quebrada da nossa casa. Mas eles não sabem que a nossa casa não é o limite da nossa existência. Vamos olhar nos olhos deles. Lá no fundo. Eles odeiam olho no olho. Olho no fundo. E se furarem os nossos olhos? E se nos matarem? E se matarem a todos nós? E se não deixarem restar ninguém. E se eles nos perderem de vez? E se eles nos perderem de vez?

E SE ELES NOS PERDEREM DE VEZ?

Daí nós venceremos. Venceremos sem que tivéssemos usado qualquer bala, faca ou notícia falsa. Venceremos sem nenhum orgulho, sem nenhuma vaidade. E, ao chegarmos ao fim de nós mesmos, eles não terão contra quem investir o seu ódio.  E sem ninguém para odiar eles chegarão ao fim. Estupefatos, talvez, eles poderão compreender num relâmpago de lucidez, que nunca souberam viver sem a nossa presença, que a nossa presença dava sentido à existência deles.

Mas talvez seja tarde.

*

Marcelo Maluf é escritor e professor de criação literária. Mestre em Artes pela Unesp. Escreveu o livro de contos Esquece tudo agora (Terracota, 2012) e o infantil As mil e uma histórias de Manuela (Autêntica, 2013), entre outros. Em 2015, publicou o romance A imensidão íntima dos carneiros (Editora Reformatório), livro finalista do Prêmio da Associação Paulista de críticos de Arte (APCA, 2015), finalista do Prêmio Jabuti (2016) e Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura (2016), na categoria estreante com mais de 40 anos.

Tags: , , , ,