* Por Mauricio Vieira, de Paris *

 No centenário da morte de Degas (1834-1917), o Musée d’Orsay, em Paris, expõe a longa e profunda amizade que o pintor cultivou com o poeta Paul Valéry (1871-1945).  Por meio das telas, esculturas e sobretudo desenhos do primeiro; e dos famosos Cahiers, repletos de desenhos de corpos, e também de textos e primeiras edições de Degas Danse Dessin, livro que o poeta publicou em 1937, a exposição que leva o nome do livro de Valéry nos guia através do percurso que ligou os dois artistas, como uma linha mestra que decifra o movimento de uma bailarina. 

A amizade entre os dois foi precisamente isso, um balé, cujos movimentos são patentes nos desenhos de Degas e nos textos de Valéry.  Degas não era muito afeiçoado aos escritores, mas com Valéry foi diferente. A amizade, que durou mais de vinte anos, tornou-se algo tão forte que Degas enviava bilhetes pelo pneumático a Valéry dizendo, “Sonhei, meu querido Valéry, que você viria jantar comigo esta noite. Responda sim ou não.  Amitiés, D.”

Tampouco Valéry era aberto a todos os pintores. Conheceu a vanguarda de 1907, mas não escreveu sobre ela, diferente de Apollinaire, de primeira hora oráculo dos Cubistas e depois dos Futuristas.  Valéry foi fiel a Degas.  Para ele, o pintor era o Anjo.  O poeta encontrou nos desenhos de corpos de Degas a solução de questões que o perseguiram por toda a vida.  Desde jovem, quando começou seus Cahiers, foi um zeloso estudante de Leonardo.  Seu primeiro livro foi Introdução ao método de Leonardo da Vinci.  Os Cahiers à mostra no d’Orsay estão repletos de desenhos de mãos.  O rigor e a lição dos clássicos era importante na poesia de Valéry.  Tanto que cessou de escrever durante anos, para depois esculpir, durante quatro, linha por linha, La Jeune Parque, obra rarefeita, concluída somente em 1917, ano da morte de Degas. Ainda ao final da vida, o poeta comporia o Diálogo da Árvore, entre o epicurista latino Lucrécio e um pastor das Éclogas de Virgílio (do célebre ‘Libertas quae sera tamen’).

            Degas, absorvendo o classicismo diretamente através de Ingres, que elogiou seus desenhos, e também ao copiar na Itália as obras da Renascença, é para Valéry o exemplo.  Seu rigor técnico é admirado pelo poeta.  Desde o início da amizade, pensava em escrever sobre o pintor, mas somente nos anos 1930 que o faz. Repleto de análises sobre o desenho e a linha, o livro DDD se tornaria uma obra chave na crítica de arte. Um dos primeiros a comprar a primeira edição foi Picasso.

         O percurso da exposição se desenvolve através dos estudos da juventude do pintor, sobretudo sua obsessão com a perfeição.  Mas o que destacou Degas de ser apenas um seguidor do “faça linhas,” ditado por Ingres? O pintor beneficiou-se da evolução das tecnologias da fotografia e do cinema, para poder aperfeiçoar os detalhes do movimento do corpo humano e do cavalo, seu outro grande tema na exposição. Os estudos equestres de Degas corrigem erros dos mestres que não tiveram acesso às sequências de Muybridge. O cavalo, “todo nervosamente nu em seu vestido de seda”, dança sobre as patas em ponta, como uma bailarina.

            Outro traço que define a obra de Degas é a escolha das poses e situações nas quais retratava suas banhistas e bailarinas, em repouso, se espreguiçando, terminando o banho, usando o rigor clássico mas com temática moderna. “Nem a graça, nem a poesia aparente são seus temas”, segundo Valéry.  São os momentos espontâneos do corpo feminino, fora do mecanismo da coreografia de um balé ou do funcionalismo da higiene do corpo.   

         “Não sei qual arte possa engajar mais ‘inteligência’ que o desenho. Seja extrair do complexo da visão a descoberta do traço que resume uma estrutura, de não ceder à mão, de ler e pronunciar em si uma forma antes de escrevê-la; ou então que a invenção domine o momento, que a ideia se faça obedecida, se precise, se enriqueça disto que ela se torna no papel, sob o olhar — todos os dons do espírito encontram seu emprego neste trabalho, onde aparecem não menos fortemente todas as características da pessoa, quando ela as possui,” define Valéry.   

     Escrever sobre o desenho, ou seja, compor linhas sobre linhas, seria uma forma de traçar com o dedo o contorno de uma amizade tão bem desenhada? Do poeta, trechos do livro que escreveu em forma de elegia ao amigo pintor, em cuja obra encontrou tanto do que procurava, e que lado a lado, encontram-se expostos na mostra, que acontece de 28 de novembro a 25 de fevereiro de 2018.  

*

Mauricio Vieira é escritor, autor de A árvore oca, entre outros

Tags: