Eu contra o sol

* Por Alex Tomé *

Vinte e um de junho

O caos faz a ocasião.

A violência era atroz, movimentos céleres e invisíveis, como uma hélice de helicóptero no ar. Manifestantes cercaram o prédio da Prefeitura e acuaram os guardas-civis em seu interior. Ao mesmo tempo acontecia uma fuga em um furgão da emissora que se autoproclamava líder em audiência. Setecentos e cinquenta policiais militares deslocados para atuar no protesto, trezentos e oitenta manifestantes detidos, duzentos e oitenta feridos, vinte e nove pê-emes machucados, vinte e dois jornalistas com alguma espécie de lesão. A polícia havia descumprido protocolos no controle da manifestação. Um restinho de sol se punha nas costas da mão de Benício naquele fim de tarde laranja-vermelho. Os manifestantes disputavam suas versões em tudo com a polícia, inclusive os números. Fotos comprovavam milhares nas ruas enquanto a polícia falava em centenas, organizadores afirmavam em cinquenta mil, a instituição policial sete mil. “Nós vamos parar a cidade”, berravam os mascarados. Também participavam milhares de pessoas de outros estados. As manifestações serviam ao desenvolvimento turístico da cidade. Estavam na linha de tiro, sendo necessárias pequenas correções para que ninguém saísse ferido. Os que chegavam introduziam bandeiras alheias às motivações originais; e até mesmo o ressentimento e o rancor eram bandeiras, já que não havia exigências claras. Um grupo agitado queimava um ônibus que fazia a rota na volta para casa dos subúrbios, típica rebeldia urbana contemporânea de garotos criados pelas avós em apartamentos triplex. Outra manifestação ocorria há três quilômetros dali. Um jovem negro tentava furtar uma loja de conveniência, ele foi detido e amarrado ao poste, seu linchamento público era em si um ato de manifestação, a multidão sequiosa de ódio se tornava, ela própria, odiosa. A corrente com que o amarraram era uma parte viva deles, dos justiceiros. A urina do homem abatido escorria pelo meio-fio. Ele que não era nada, até então, agora era uma notícia, um exemplo para os da sua laia. Inclusive o nada era a principal motivação dos que agrediam em sua explosão cega de violência. Um sonzinho murmurante saiu espremido das narinas do condenado, os que o cercavam protestavam em busca de autoafirmação. Uma loiraça foi a primeira a cuspir-lhe na cara, usava um microvestido herchcovitch e o fato de ser caro legitimava sua indecência. Os demais lhe davam pontapés no corpo. “Pronto, tá faxinado”, ela cuspiu mais uma vez e limpou a boca com um lenço. Xingavam e protestavam contra ele e os da sua casta, uma flutuação intolerável das palavras. Voltamos à cena anterior em que os manifestantes aplicavam uma violência dirigida a si mesmo: os carros e escolas incendiadas eram do próprio bairro. Devemos desistir da cidade? Devemos escolher o menos pior? O caráter conspiratório das rodas de conversa enlouquecia a polícia, portanto, sucumbiam à violência. Os choques virilizam as pessoas. Os linchadores achavam que aquela notícia estremeceria o dia, o mundo, a semana. Era necessário atravessar muitos semáforos para acessar a rua e Benício não os alcançava. Se acaso chegasse, o que faria? Dois grupos, a galope, se enfrentavam durante as manifestações, um mais progressista, outro de caráter ultraconservador, evidente que os rótulos se relativizavam aos olhos de quem observava. O que é ser progressista hoje em dia? Os governantes observavam do alto dos prédios, as vozes das ruas chegavam até eles, o que não quer dizer que a ouviam. Sem dúvida, a posição política deles era digna de nota, resistir debaixo daquele sol de quarenta e tantos graus. Benício enfim aparecera, estava deslumbrado por uma black bloc com uma fenda sensual entre a calça jeans e a blusa florida. Onde houver um policial haverá um black bloc, ela dizia. Onde houver um black bloc haverá um policial, disse o oficial da lei. Não estavam de igual para igual. Alguns bloquistas vestiam diesel e john john, outros estavam encapuzados à maneira da morte em O Sétimo Selo. Não era só a cor que incomodava os governantes, mas as máscaras; à medida que o anonimato os esvaziava de humanidade os supria de valentia. Os black blocs eram o grupo mais homogêneo porque há meses resistiam às tentativas de infiltração policial no movimento. A ordem era queimar as bandeiras antes da dispersão. Benício flagrou o comandante dizer a um dos oficiais, “um exemplo basta, um corpo estirado no chão será mais que suficiente”. As autoridades pediam respeito à propriedade privada quando, na verdade, este era o principal direito que estava em xeque. A ideia era satisfazer o desejo de destruição: os manifestantes da propriedade do Estado, os policiais dos corpos rebeldes.

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O trecho acima compõe o romance Eu contra o sol, de Alex Tomé (Confraria do Vento, 480 pág.), a ser lançado este mês.

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Alex Tomé é formado em Comunicação Social: Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos e atualmente cursa Direito. Nasceu em Orlândia e hoje vive em Guaíra, São Paulo. Roteirizou os curta-metragens A Cena Perfeita e Recortes, este último ganhador de um Kikito em Gramado. Eu contra o sol é seu primeiro livro