chapeuzinho

* Por Paulo Ribeiro *

É praticamente desconhecida a adaptação que João Guimarães Rosa fez para clássica “estória” da Chapeuzinho Vermelho, que passou a ser Fita verde no cabelo. Em sua releitura, a menina passa a ser uma adolescente que descobre a sua sensualidade e obtém, simultaneamente, o “seu juízo”.

Na reinterpretação de Guimarães Rosa do livro de Perrault, a adolescente de fita verde no cabelo atravessa a mata e se depara, não com o lobo, mas com musculosos e férteis lenhadores que exibem a nudez de seus bíceps no trabalho.

Não é muito diferente a leitura de Erich Fromm da “estória” de sua Chapeuzinho Vermelho. Para Fromm, a maior parte do simbolismo desse conto de fadas é entendido sem dificuldade: o chapeuzinho de veludo vermelho é o símbolo da menstruação e a menina de cujas aventuras nos falam tornou-se adulta e vê-se agora defrontada com o problema do sexo”.

Segundo ele, a advertência de “não sair da trilha” para não cair e quebrar a garrafa, é claramente um alerta contra o perigo do sexo e de perder a virgindade.

O apetite sexual do lobo é excitado ao ver agora a garota e procura seduzi-la sugerindo para ela olhar em torno e ver como os pássaros estão cantando docemente. Chapeuzinho Vermelho ergue os olhos e, seguindo a sugestão do lobo, vai aprofundando-se cada vez mais no bosque. Ela faz isso com uma racionalização bem típica: a fim de convencer-se de nada haver de errado, reflete que a avó ficaria contente com as flores que ela lhe levasse.

Esse desvio do caminho reto da virtude, porém, “é punido severamente”.

A trajetória — este “desvio de conduta” da adolescente — é vista por outro ângulo por Guimarães Rosa Para o mineiro, é neste instante que se dá “a aquisição do juízo”— leia-se este juízo num sentido mais abrangente possível, que se estende até a aquisição de uma “consciência” do mundo, e as relações da garota com os antagonismos desta nova vida. Vida , amor e morte. Sensualidade, desejo e solidão.

Esta aquisição de consciência só é avalizada, no entanto, no diálogo final entre a avó moribunda e a neta adolescente. No diálogo das duas se dá mais uma vez em Rosa a perfeita abordagem verbal de um signo (popular): a fita verde no cabelo.

Ao transpor o conteúdo “moralizante” do texto original da Chapeuzinho Vermelho para seu universo da sensualidade e da ambiguidade que perpassa toda a sua obra, João Guimarães está colocando a sua visão de mundo, a sua concepção ideológica, que vai desaguar, não em moral da estória, mas na “obtenção de sua consciência” na adolescente.

Ali onde o signo se encontra (a fita) “encontra-se também o ideológico”. Mikhail Bakthin ressalta que cada campo da criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira. João Guimarães Rosa, por exemplo, substitui na sua estória o lobo pela morte concreta da avó, com “mãos trementes” e “olhos cerrados”.

Podemos observar, portanto, que a consciência individual está repleta de signos. E Bakhtin justamente sublinha que “a consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico e, consequentemente, somente no processo de interação social.

Muito oportuna. Quase palpável, diria, esta observação do professor Mikhail. E ela é claramente detectada em  Fita Verde na passagem da adolescente pelos lenhadores, e a consequente “onda de fantasias” da garota. Mas não só: quer dizer que somente no convívio coletivo — na polissemia (na polifonia) — é que se dá a completa “consciência” na interação social. Esta é a maior contribuição de Bakhtin como teórico, como estudioso do literário, que pode ser constatada com maior profundidade em seu estudo sobre a poética nos romances de Dostoiévski.

Coerente, portanto, Bakhtin vai nos dizer que a consciência individual não só nada pode explicar, mas ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social.

As relações do indivíduo estão ancoradas na sua relação social. E é João Guimarães Rosa que impregnará à estória de Charles Perrault seus próprios “signos ideológicos”, ideologia marcada pelo desejo — sensualidade de Diadorim e Riobaldo — agora representada na figura da adolescente, em face das suas relações com os outros: lenhadores, lobo, avó.

Ver:

Bakhtin, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. In: “Estudos das Ideologias e Filosofias da Linguagem”. São Paulo. Hucitec. 1986;

Fromm, Erich. A Linguagem Esquecida. Rio. Zahar. 1964;

Rosa, João Guimarães. Fita verde no cabelo. Editora Nova Fronteira. 1988. 2ª edição

*

Paulo Ribeiro é professor da Universidade de Caxias do Sul. Escritor, acaba de lançar Bagorra, uma coletânea de contos, pela Kotter Editorial

Tags: ,