* Da redação *

Em parceria com a editora Iluminuras, o Itaú Cultural acaba de lançar Pistas Falsas: uma ficção antropológica, livro do escritor e teórico argentino de estudos culturais Néstor García Canclini. Trata-se da 20ª publicação de Os Livros do Observatório, coleção composta por edições voltadas a reflexões sobre gestão, economia, políticas culturais e aos impactos da tecnologia na sociedade. Segunda ficção da série, a obra de Néstor García Canclini é ambientada em um futuro nada distante, 2029, onde as grandes guerras são travadas no ciberespaço, as catástrofes naturais arruinaram arquivos milenares e as interações sociais acontecem quase exclusivamente nas redes sociotécnicas, sob permanente vigilância.

Este mundo, onde as cidades se transformaram em um tênue campo de batalha entre imigrantes, exilados, apátridas e os donos do capital, é o cenário no qual surge a história de amor entre o protagonista e Elena, uma antropóloga argentina que ele conheceu no circuito de conferências do qual participa. Imbuídos de uma solidão indissolúvel, eles tentam reconfigurar a ideia de mundo tolerável a partir da improvável possibilidade de estarem juntos.

Néstor García Canclini é doutor em filosofia pela Universidade Nacional de La Plata, na Argentina, e pela Universidade Paris Nanterre, na França. É professor titular da Universidade Autônoma Metropolitana e pesquisador emérito do Sistema Nacional de Pesquisadores (SNI), ambos no México, onde reside atualmente. Canclini também assumiu em outubro a titularidade da Cátedra Olavo Setúbal, uma parceria do Itaú Cultural com o Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA/USP), na qual desenvolverá o projeto A Institucionalidade da Cultura no Contexto Atual de Mudanças Socioculturais.

Leia trecho da obra:

“Trate-me bem porque estou escrevendo um diário”, escutou dizer, quase gritar, quando a empregada abriu a porta e o arqueólogo disse que tinha um encontro com Alan Bellat. “Aí vou contar o que penso de vocês.”

— Entre, sente-se. Assim que o sr. Alan se desocupar, vai atendê-lo.

O arqueólogo havia pensado que o escritor estava discutindo com sua família, mas o que seguiu da conversa, as pausas sem que se ouvissem respostas, o fez entender que Bellat estava numa conversa telefônica com uma jornalista. Parecia que o haviam atacado por causa do seu último romance.

O escritor chegou e se apresentaram.

— Não lhe ofereceram nada? Vamos ver, Ofelia, traga um uísque para o senhor. Com gelo?

— Sim, obrigado.

— Lamento tê-lo feito esperar, mas era uma jornalista coreana que escreveu uma crítica disparatada sobre mim e agora pretende que eu lhe dê uma entrevista. Um velho truque: agredir e depois fazer a vítima falar para que pareça um energúmeno.

— Eu estou começando a lê-lo — disse o arqueólogo — e por enquanto não vou escrever sobre sua obra. Me interessa conversar sobre sua ideia do escritor como destino turístico.

— Somos parte dessa indústria — respondeu Alan, sem deixá-lo continuar. — Os escritores e artistas somos recursos para ampliar as experiências. Como as pessoas que vêm a Buenos Aires já se cansaram de que as desviem para as cataratas ou os glaciares, as agências de turismo, que começaram com as rotas Borges e Fogwill, agora escolhem os protagonistas das últimas polêmicas. “Venham visitar Bellat ou Samanta Schweblin.” Me deixam louco com os pedidos de entrevistas, visitas guiadas à casa do escritor, como se fôssemos o Cabildo ou a Costanera. Tentaram, anos atrás, aumentar o atrativo de Buenos Aires com os Villa Miseria Tours, como fizeram com os Favela Tours no Brasil, mas isso se desgastou e agora tentaram as visitas aos campos de refugiados sírios. Já viu, o governo, em troca de petróleo barato, recebeu quatrocentos e vinte mil árabes, e a metade está aqui, na periferia de Buenos Aires.

“Às vezes trazem escritores de outros países que polemizam com a gente, ou são pagos para que o façam. Por isso vou escrever um diário e contar tudo. Embora alguns que são trazidos da Espanha não precisem que a gente os escute. Delatam-se sozinhos, como essa escritora Selva Montero, que escreveu: ‘Nunca seremos tão jovens como hoje e a vida se conquista dia a dia’.”

Bellat acabou de dizer a frase enquanto ia atender outra chamada telefônica. O som diferente do iPhone o fez exclamar que se tratava de seu editor inglês. Conseguiu ouvir que Bellat respondia sem vontade sobre o giro que lhe haviam organizado por catorze cidades dos Estados Unidos.

— Vamos reduzir a lista a universidades com cidade. Que interesse tem — dizia Bellat — ir falar com quinze estudantes num campus se o vilarejo onde fica tem só uma rua com dois restaurantes? Nós, escritores, não vamos resolver o problema deles de entretenimento.

O arqueólogo percorria a casa e não via nada além da biblioteca alongada numa parede, quadros mínimos de pintores argentinos e brasileiros, móveis provavelmente herdados, uns poucos artesanatos peruanos e mexicanos trazidos (quase certo) de seus giros de promoção, as umidades antigas do teto que revelavam suas dificuldades para pagar a manutenção, enfim, uma casa sem assinatura de autor, com a moderada amplitude própria de uma fama sem estirpe. As três cerâmicas japonesas falavam de uma curiosidade fugaz. Começava a pensar que talvez precisasse se render a uma visita de agência para escutar o roteiro que incorporava este lugar ao itinerário de estrangeiros.

Quando Bellat retornou, o arqueólogo lançou sua provocação:

— Eu pensava que a ideia do diário como vingança fosse antiga. Mesmo na Argentina. Li há pouco tempo o diário do Bioy Casares, essa tentativa de diminuir Borges.

— O senhor não me disse que não era como esses jornalistas de escândalo?

O arqueólogo se entusiasmou em seguir essa linha, na qual o escritor havia se prendido.

— Um escritor chileno dizia, faz vinte anos, que na sua geração os poetas prestigiosos só serviam para que lhes pedissem cartas de recomendação. Nessa época, tinham que pedir a Zurita. Agora, quem faz isso?

— As grandes biografias literárias já não são autoridade. As decisões são tomadas com outros subentendidos, que também me custa decifrar. Até uns dois anos atrás, contabilizavam-se as citações em blogs, mas deixou de se fazer. Depende do que você estiver procurando: uma bolsa, ser traduzido, que transformem seu romance em roteiro televisivo ou em video game.

A conversa foi se desvanecendo. Não estava claro se Bellat estava cansado, queria passear com seus cachorros, que o assediavam, ou alguma coisa aconteceu nas chamadas que seguiram, embora ele não atendesse a maior parte. Como um sítio arqueológico se afasta daquele que o visitou, despediram-se.

 

Tags: , ,