* Por Ronaldo Cagiano *

                 Em O avesso da pele, recente livro do escritor e professor gaúcho Jeferson Tenório, o racismo e a violência policial que, endemicamente, vitimizam as populações pobres e negras, sãos abordados num viés de denúncia e reflexão. A obra se faz mais do que necessária para discutir um tema tão relevante nas demandas atuais do país, sobretudo nesse momento em que se acentua drasticamente a explosão do ódio e dos preconceitos, na esteira de um governo que tem na alma a violência e como projeto a implosão de avanços e conquistas inclusivos, desenho do fascismo que a cada dia se consolida, corroendo as instituições e instaurando uma atmosfera de medievalismo e barbárie.

A ficção abarca, na sua fiel e dramática carga de verossimilhança, um recorte dessa tragédia que se repete quotidianamente nas cidades brasileiras, numa perspectiva que nos lembra um Bergman, que entendeu que “a realidade continua pior do que o pesadelo”. A história é narrada por Pedro, um jovem que perdeu o pai, Henrique Nunes, professor de escola pública da periferia de Porto Alegre, assassinado aos 52 anos pelas forças policiais numa abordagem de rotina. O episódio reflete o terrível estigma por que passam os negros, sempre o primeiro alvo de qualquer ação da segurança pública, vistos como ameaça social, resultado de uma tragédia maior, o abismo entre classes, as oligarquias e privilégios que geram a pobreza e a desigualdade, esse  passivo social germinador da violência que expande toda uma rede de injustiças e  opressão sobre parcelas  vulneráveis da população, atavicamente usurpadas e violadas em seus espaços, subjetividades e identidades.

O autor cria um enredo extremamente delicado e contundente em uma teia de fatos que mapeiam a gênese de um espectro comum a milhares de pessoas em nosso país, renegadas e devastadas por um sistema historicamente castrador e impermeável. O gatilho dessa história é detonado pelo olhar escrutinador e perplexo do filho, como se fosse seu  alterego onisciente. Ao visitar a casa do pai após sua morte, rastreia o que sobrou de sua vida, entre recordações e pertences, tomando como ponto de partida um ogudá depositado num alguidar (aqui um referencial simbólico para a cultura dos afrodescendentes). Esse encontro mítico deflagra  uma pungente cartografa física e sentimental de fatos que conforman um quotidiano severo,  culminando num verdadeiro inventário de vicissitudes; e assim vai recolhendo os cacos de um vitral despedaçado violentamente no decorrer de uma existência sofrida, para recontar a sua trajetória na tentativa de entender a vida que poderia ter sido e não foi.

Narrado em segunda pessoa, a memória do filho que sofreu com ausência do pai, emula o tom epistolar do livro, evocando a figura paterna (e sua relação com a mãe, Martha), explorando as veredas de uma experiência trágica. Dirigindo-se ao pai por um doído “você” – um vocativo repetido como uma mantra – Pedro deslinda todos os tempos de uma caminhada íngreme premida pelas circunstâncias da adversidade desde a remota infância. O racismo, contra o qual o pai lutou, é o liame do romance, é o que constrói e ao mesmo tempo destrói o seu percurso, comportando no desenrolar do fio narrativo de um novelo excruciante, uma instância de desabafo e resistência. No entanto, a premência dessa angústia traz um componente singular na escrita de Jeferson Tenório ao dissecar essa realidade: a ausência de panfletarismo ou engajamento, mas o sentido mais profundo de um endurecimento (com ternura) de uma  densa e tensa força crítica contra esse abominável e indisfarçável status quo que tanto avilta e humilha, tantas vezes camuflado na falsidade das relações, mormente num país que assiste o cinismo  do vice-presidente da república e o escárnio de outras autoridades ao negarem o racismo, o que desmente escandalosamente o falso mito da democracia racial e da cordialidade brasileira.

Como sugere o narrador, “a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo”, essa é também a percepção que se tem sobre a história da formação da nacionalidade brasileira desde a tomada pelos portugueses. Ao longo desses mais de quinhentos anos, esse tem sido o nosso permanente holocausto, eis que ainda está enraizada na índole retrógrada de grande parte da sociedade, cada vez mais excludente e seletiva, a praga de uma ancestral consciência escravocrata, que ainda não foi erradicada, mesmo após a Abolição, subsistindo criminosamente como doença estrutural.

O avesso da pele recompõe esse imaginário povoado pela cultura da segregação e procura esmiuçar os condicionamentos que operam no bojo das relações pessoais, familiares, laborais, políticas e institucionais, que têm na cor o estopim de conflitos insuperáveis que a cada dia aguçam a violência e o luto, como o que ora se viu há pouco em Porto Alegre, quando um cidadão foi espancado até à morte por seguranças do Carrefour estigmatizado por ser negro, exposição cabal da negação do direito de ser, estar e viver, porque o avesso, tanto como sede de embate identitário, é território de permanente frontalidade contra toda a indignidade imposta por esses apartheids, sejam eles sociais, econômicos, culturais, psicológicos ou geográficos.

A família enfocada no livro vive suas migrações, entre o Rio e Porto Alegre, algo que confunde-se com a própria vivência do autor, carioca de nascimento e radicado na capital gaúcha, onde, enfrentando essas acirradas barreiras, ascendeu intelectual e  socialmente como professor universitário e escritor reconhecido, vencendo todos os entraves e percalços de uma sociedade, como a do sul,  marcada historicamente como um bolsão de conservadorismo e pruridos separatistas.

A visita a esses cenários de nossa diáspora interna permitiu ao autor dialogar com sua ancestralidade e os valores que tanto influenciaram sua trajetória como homem e escritor participativo e que lhe permitiram uma imersão candente e dialética em sua própria dor. Seu texto é permeado de rigor histórico-reflexivo, com o amálgama de uma linguagem simples e cristalina resguardada por um questionamento poético na recomposição de cenários tão aviltantes. Destaca-se um componente essencial, o recurso da intertextualidade, ao invocar Crime e Castigo, de Dostoievski, nas aulas em que o personagem ministra na escola de periferia, flertando com a realidade daqueles alunos também afetados pelo mesmo sistema que o veta socialmente. Essa simbiose funciona como catarse de um drama que percorre avassaladoramente o triste caminho da sobrevivência de tanta gente. O plano narrativo adotado pelo autor com a intercalação de vozes cria um efeito semântico e plástico que mergulha no centro das tensões e faz a pele do leitor ser também acicatada pelos mesmos guantes do preconceito, do bullying, das perseguições e ofensas que atingem a vida dos personagens. É uma escrita de sondagem do humano que nos dá o necessário soco no estômago ao comunicar plenamente esse horror, cuja empatia mobiliza nossas emoções e, sem floreios, sem dourar a pílula, nos alerta, mas sem a tentação do ressentimento ou da autocomiseração, sobre essa grande enfermidade que nos assola desde sempre e que aponta para  essa miséria atávica que define nosso declínio civilizacional.

Inventivo e original, O avesso da pele transcende o espectro literário para impor-se como documento de investigação antropológica e torna-se leitura obrigatória para gerações futuras compreenderem o atribulado processo de formação da identidade nacional, pois desnuda as feridas abertas e as cicatrizes irremovíveis insculpidas na epiderme e na história dos negros que emprestam suor, lágrimas e sangue à argamassa na construção da  diversidade e da riqueza econômica e cultural do Brasil.

Trecho:

Há nos objetos memórias de você, mas parece que tudo que restou deles me agride ou me conforta, porque são sobras de afeto. Em silêncio, esses mesmos objetos me contam sobre você. É com eles que te invento e te recupero. É com eles que tento descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar. Talvez eu deseje chegar a algum tipo de verdade. Não como um ponto de chegada. Mas como um percurso que vasculhe os ambientes e dê início a um quebra-cabeça, um quebra-cabeça que começa atrás da porta da sala, onde encontro o alguidar4 de argila alaranjada. E, dentro dele, uma pedra, um ocutá5, enrolada em guias6 de cores vermelhas, verdes e brancas, um orixá. Observo-a com cuidado. É assim que se adentra numa vida que já se foi. Tiro o ocutá do alguidar. Lembro o dia em que você me disse que sua cabeça era de Ogum7, e que isso era ter sorte, porque Ogum era o único orixá que sabia lidar com os abismos.

O avesso da pele, de Jeferson Tenório (Companhia das Letras, 192 págs.)

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Ronaldo Cagiano é escritor, reside em Portugal

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