* Por Alexandre Staut *

 Aos 25 anos, José Castello era aspirante a escritor. Enviou um conto a Clarice Lispector, com seu número de telefone anotado. Dias depois, recebia uma ligação: “José? Aqui Clarice Lispector.” Ele mal conseguiu responder. Tempos mais tarde, ambos se tornariam amigos. Leia a entrevista emocionante em que o autor fala das tardes em que se encontravam para falar da vida, comer bolo de chocolate e tomar coca-cola na casa dela.

Poderia contar como foi recebido da primeira vez que você ligou para Clarice, dizendo que era escritor? Eu tinha uns 25 anos de idade. Um dia, pelo correio, lhe mandei um conto. “Carta a um observador romano”, ele se chama. Entre os 20 e os 30 anos, escrevi muitos contos, embora nunca os tenha publicado. Junto com meu relato, mandei meu telefone, mas nunca pensei que ela iria me ligar. Um dia o telefone toca em minha casa. “José? Aqui Clarice Lispector”, ela me disse. Eu mal consegui falar. Então, antecipando-se, ela disse, com aquela sua pronúncia cheia de erres, que atribuíam a sua origem ucraniana, mas que ela dizia ser o resultado de uma língua presa: “Li seu conto e só tenho uma coisa a lhe dizerrrr: você é um homem muito medrrrroso e com medo ninguém escrrrreve. Boa tarde”, e simplesmente desligou. Até hoje, passados 40 anos, ainda ouço com nitidez sua voz. Foi a crítica literária mais importante que já recebi.

Depois do primeiro contato, como foi se aproximando dela? Não insisti. Não a procurei mais por um longo tempo. Na verdade, sua crítica me deixou completamente paralisado. Mas foi muito útil para mim. O medo – diante da página em branco, da página vazia – é um sentimento bem conhecido por todos os escritores. Escrever é enfrentar esse medo. Não chega a ser derrotá-lo, porque acho que nunca o derrotamos, mas é encará-lo e desafiá-lo. Nunca mais esqueci disso.

E o primeiro encontro? Quase um ano depois, já alguns meses antes de sua morte, voltei a procurá-la, dessa vez pessoalmente, na condição de repórter colaborador do Segundo Caderno, de O Globo. Foi um encontro muito difícil. Naquela época, os gravadores tinham o formato e pesavam como tijolos. Levei um – que na verdade pertencia ao jornal – em minha bolsa. Assim que entrei, e ela me ofereceu uma poltrona, abri minha bolsa e o coloquei sobre a mesa de centro. Foi um gesto natural, que fiz sem pensar. Imediatamente Clarice se levantou e com os braços erguidos, dando furiosos socos no ar, começou a gritar e gritar. Eu não conseguia entender o que estava acontecendo. Será um incêndio? Entrou um ladrão no apartamento? No Brasil não temos terremotos – pensei. Até que, para minha salvação, uma mulher surge no corredor e a agarra por trás, como uma camisa de força. Tempos depois soube que essa mulher era Olga Borelli, uma de suas maiores amigas, que tem inclusive um lindíssimo livro sobre ela, Clarice Lispector, edito pela Nova Fronteira. Aos poucos, Clarice se acalmou. Então, com um imenso nojo, pegou meu gravador com a ponta dos dedos, o braço esticado como se carregasse um rato morto pelo rabo, e disse: “Eu fico com isso. No final eu lhe devolvo”. As duas entraram na parte íntima do apartamento e me deixaram sozinho. Fiquei sem saber o que fazer. Elas voltariam? Aquilo era um convite para que eu me retirasse? Algum tempo depois Clarice volta sozinha. Traz uma chave nas mãos. Balança a chave diante de meu rosto e diz: “Aquilo está trancado no meu armário, no final eu devolvo”. Sentou-se, e agora muito calma, disse ainda: “O que você quer saber mesmo?”

E depois, como a relação foi se estreitando? No fim da entrevista, depois de devolver meu gravador, ela me disse muito calma: “Gostei de você. Quando quiser, venha me visitar. Tomaremos Coca Cola e comeremos bolo de chocolate. Você gosta de bolo de chocolate?” Aceitei seu convite e, vencendo a timidez, voltei semanas depois. Desde então, e até a internação que a levou à morte, eu a visitei uma meia dúzia de vezes. Levava-me sempre para a mesa da cozinha , uma dessas mesas horríveis de fórmica, e conversávamos sobre a vida, sobre assuntos banais. Ela parecia muito interessada em minha vida. De literatura, pelo que me lembro, nunca mais falamos.

Você chegou a mostrar textos seus para ela? Nunca mais tive coragem de mostrar nenhum texto para ela. Não suportaria uma nova condenação. Desde os 19 anos, era um leitor apaixonado pela obra de Clarice. Sou até hoje. Diante dela, preferi sempre sustentar meu lugar (verdadeiro) de leitor. Na verdade, a crítica de Clarice me paralisou. Durante muitos anos, muitos mesmo, dediquei unicamente a meus textos jornalístico. Mas nunca perdi a literatura de vista. Não apenas como leitor, mas com a certeza de que, um dia, bom ou ruim, eu seria um escritor também. Até hoje o tema do medo está entre meus preferidos. Ele aparece, de forma escandalosa, por exemplo, em meu romance “Ribamar”, de 2010. Está no centro também de Dentro de mim ninguém entra, meu primeiro relato infanto-juvenil, que sai em novembro próximo pela Berlendis.

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Alexandre Staut é autor do recém-lançado Paris-Brest (Companhia Editora Nacional); é editor da São Paulo Review

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