Terra nos cabelos

A lutar com prendedores e o frio do mundo sobre a roupa torcida, ouvi meu nome. Vinha da rua, de olhos faceiros e língua corrompida a contar que meu neto se metia em problemas com aquela gente portadora da ruindade nativa, da satisfação de interromper. Então, as roupas pingando do varal e o vento no comando, saí correndo portão afora. Escalei a lomba até o inferno com minha gravidade pesada de mulher velha. Chegando lá sobre o descampado, a roda já estava feita.

De fora, olhei para ele perdido em mais uma das armadilhas feitas contra nós. E o choro iniciado em seu primeiro respiro emendava-se agora frente a meus olhos, também no meu peito.

Empurrei um, dois, não sei mais quantos dominados por forças perversas que vibravam na mesma frequência, até chegar no centro da roda. Kito, me reconhecendo, baixou a cabeça. Outros dois de pés descalços se olharam e, feito cachorros acuados, se puseram a ladrar contra ele. O homem grande, suposto em prejuízo, retaguardado por outros da mesma malandragem, deu um passo para a frente quando o silêncio dos dedos apontados se fez.

Pegou meu menino pelos encaracolados como se eu não estivesse ali, como se eu não tivesse pés de cruzar mundo, braços de manter casa em pé. Atordoada, já sem frio no corpo, só com o zás-trás dos olhos dos que só são escolhidos quando se precisa de culpados, pulei e, mesmo não sendo a mãe primeira, tomei-o nas mãos como que recompondo o cordão umbilical e lhe bati.

Bati até doer nos outros, até revirar estômagos, até abrirem a roda e selarem portas e janelas. Bati e gritei até retumbar bem dentro deles o meu pesar, até a história se tornar única, até fazer entrar pelas palmas claras das minhas mãos o meu menino, o mesmo que vi crescer na barriga, o mesmo que embalei desde sempre e mais depois que a mãe se perdeu.

Então, já sem a posse de mim e chinelos, ajoelhada no revirado do chão, de volta ao lugar do meio, ouvi: “Pode levar o menor. Vai na fé. Aqui tá tudo acertado.”

Em silêncio como nos ensinaram, mais fraca do que a própria dor, puxei meu pequeno guerreiro intrêmulo mais pra junto e, fora do mármore, ainda diante das vistas da comunidade, o abracei sofrido e quente e sussurrei-lhe palavras de antigamente, palavras de vida ao espírito. Ardia? Já não sabia se era ele ou eu quem apanhara.

Juntei forças sobre os joelhos esfolados e pus-me de pé.

Com Kito nos braços, o último afluente de meu rio, meu preto sem direito ao céu, mas com terra nos cabelos, desci do calvário em procissão pelas vielas do morro.

Em casa, acendi velas, macerei ervas em ritual de oração. Tratei nossas feridas externas, deitei-o na camarinha e cobri-lhe a cabeça com meu coração em trapos.

Agora o esfriar da raiva me trazia de volta ao território do medo. E se fosse preciso continuar sozinha? Acertou-me o pensamento feito bala perdida. Sem ar, peito ardendo, saí para o pátio e, não sabendo como desturvar o raciocínio, voltei ao tanque.

Batendo roupa como um açoite nas costas, aos poucos fui entoando um canto muito antigo. Meu corpo tentava acalentar a tremedeira dos sentidos, na força daquelas palavras. Uma vontade de chorar sufocada em mim se desprendeu no momento em que me virei e o vi de cabeça erguida na porta do barraco. Lágrimas correram pelo meu rosto, e ainda mais quando senti que em seus olhos não havia culpa.

*

Terra nos cabelos, de Tônio Caetano (Record,  112 págs.)

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