O escritor e crítico literário Bruno Inácio lança, em setembro, De repente nenhum som, livro de contos contemplado pelo Programa Municipal de Incentivo à Cultura (PMIC), de Uberlândia (MG).

A obra sai pela Sabiá Livros, com orelha de Marcela Dantés, prefácio de Monique Malcher, posfácio de Lilia Guerra, ilustrações de Orlandeli, revisão de Renata Pereira e quarta capa com comentários de Carlos Eduardo Pereira e Jacques Fux. A preparação de texto foi feita pelo escritor e editor Alexandre Staut e o projeto gráfico é do autor Andreas Chamorro.

Confira dois contos da coletânea:

Alô, alô, freguesia

O monólogo revela uma habilidade inexistente, ainda que necessária. Atropela palavras. Busca refúgio em pontos fixos. Falha no convencimento e na fuga improvisada. O menino que passa, percebe. E não deixa barato. Ri de canto numa contradição ao discurso sobre a pureza das crianças. 

Os silêncios ferem tanto quanto as palavras ríspidas.

Na caixa surrada de isopor, as pamonhas desaparecem uma a uma, num ritmo frouxo e descabido. O pai mente no olhar que tá-tudo-bem, que daqui a pouco estarão em casa. Talvez até com um refrigerante de dois litros bem geladinho para acompanhar o prato de arroz, feijão e bife.

O filho finge que acredita. Ensaia as próximas frases, quer soar mais confiante e menos ele mesmo. Quer se fazer ouvir, orgulhar o pai e correr para contar à mãe quantas pamonhas vendeu naquela tarde.

Tenta. De verdade. Mas a voz não sai.

Do outro lado, o olhar de quem não tem tempo a perder pressiona. Exige uma justificativa para ter sido incomodado por um adolescente espinhento às três da tarde. A voz, enfim, sai. Trêmula e rouca. Abarca palavras decoradas. Empurra frases mal construídas. Até considera uma tréplica depois de ouvir um não. Mas desiste e agradece. Parte para a casa ao lado.

Bate palmas e torce para que ninguém atenda.

O filho inveja a confiança do pai. O sorriso, a escolha das palavras e os maneirismos para transformar qualquer não em sim. O pai, quando diz boa tarde, não parece invadir espaços nem abordar desconhecidos.

Comenta sobre o clima e o futebol e o quanto uma pamonha seria o acompanhamento ideal para um café coado na hora. O filho observa cada movimento e frase. Tenta entender o mecanismo e reproduzi-lo, uma teoria que se nega a abraçar a prática.

Às vezes dá sorte e escolhe a casa certa. Oferece uma só vez e recebe de volta um sorriso interessado. Apressa os passos rumo ao carro e finge naturalidade ao contar ao pai que, sim, a senhora quer comprar algumas pamonhas. Nesses raros momentos do dia se sente um vendedor bem-sucedido, alguém capaz de transformar um não em um sim, ainda que nunca tenha feito isso de fato.

O pai dá dois tapinhas nas costas do filho. Tenta acreditar que tem ali o melhor parceiro de vendas que poderia encontrar. Encara o volume cada vez menor de pamonhas na caixa de isopor e quase acredita que a vida é boa. Por um momento, pensa ser feliz. Logo depois, se lembra do desemprego que o arrastou àquela situação, dos currículos distribuídos em vão e do refrigerante que não estará à mesa no jantar.

Recompõe-se de imediato.

Pobre não tem tempo para crise existencial.

E ainda faltam quinze pamonhas.

Quem compra as últimas, sempre leva vantagem. O pai já está cansado. O dia já vira noite. Não há força para novas abordagens. Ele escolhe uma casa que parece abrigar muitos moradores. Bate palmas e espera. Oferece quinze pamonhas pelo preço de sete. Nessas ocasiões, vence mais pela cara abatida que pelo discurso de bom vendedor.

A caixa de isopor, enfim, está vazia.

Na volta para casa, o cansaço divide espaço com a sensação de dever cumprido. O pai imagina um novo emprego. Um que permita refeições que não se limitem a arroz, feijão e bife. O filho elabora táticas para ser um vendedor melhor, constrói novas frases e planeja réplicas.

O silêncio dura toda a volta para casa. Tanto o pai quanto o filho sabem que qualquer palavra poderia afastar a beleza que reside naquele pedaço de tempo.

Urgência de aspas

A luz atravessa a cortina. As paredes ganham um novo contorno enquanto a pia da cozinha reflete o brilho dourado e prepotente do sol. As louças são lavadas apressadamente em movimentos automáticos e imprecisos.

— Descrições de cenários e ações não me empolgam tanto.

— Eu não gosto de diálogos com travessão.

“Prefere como?”. “Com aspas”. “Frases nas mesmas linhas?”. “De preferência”. “Fica meio confuso, não acha?”. “Não acho. As aspas marcam bem. E ainda dão um charme”. “Mas, ao mesmo tempo, parecem acelerar os acontecimentos. Isso me causa certa angústia”. “Em mim também, mas até que gosto”. “Ainda tem a questão do impacto das palavras. Sei lá, parece menor”. “Pode ter a ver com a respiração”. “Como assim?”. “Quando há travessão, acho que prestamos mais atenção nas palavras. Quando não há, existe uma sensação de urgência”.

— A narrativa pode perder algo com essa urgência.

“Ou ganhar. Pontuação também é elemento literário”. “Umberto Eco?”. “Marcelino Freire”.

“Acho que gosto quando as coisas aceleram pouco a pouco”. “O literal vai perdendo espaço para o subjetivo”. “A narrativa convencional abre espaço para o fluxo de consciência e, por fim, você já nem sabe de qual personagem é a voz”. “Como no filme do Bergman”.

E a pontuação muda e ganha urgência e os pontos desaparecem de uma hora para a outra como se fossem dispensáveis como se fossem mero capricho de quem escreve sem ter o que contar sem ter personagens devidamente construídos sem planejar histórias em três atos ou um clímax para uma situação que já beira o absurdo justamente por tentar se passar por inédita depois de ter acontecido tantas e tantas vezes na literatura e no teatro e no cinema e nas conversas de bares e cozinhas ainda que agora tenha sido interrompida pelo barulho de um prato que caiu e se despedaçou e trouxe os dois de volta ao cotidiano

“Deixa que eu pego a vassoura”. “E eu o saco de lixo”. “Tem que colocar um plástico ou algo do tipo para embalar direitinho”. “Tem que ficar bem protegido”. “Assim?”. “Assim.”.

Foto do autor: Lucas Orsini

Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e pós-graduado em literatura contemporânea. É autor de Desprazeres existenciais em colapso (Patuá) e Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros) e colaborador da São Paulo Review e do Jornal Rascunho.

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