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1987

O pai é uma lição

 

O pai, com o dedo em riste, indicou as estrelas.

— Nunca se esqueça do que vou te dizer, Pétria. Olhe para as estrelas. Olhe sempre para as estrelas, só assim você poderá esquecer tudo de ruim que acontecer com você.

Essa era a mais antiga lembrança da menina, uma lembrança que nascera aos seis anos completos um dia antes. O tempo anterior a isso era nulo, como se nunca houvesse existido. Um gato em um passear noturno, um cão a latir, a hora de comer, apenas essas coisas mínimas tinham lugar fixo na cabeça da menina. Formavam a memória dos anos que a haviam levado até aquela noite. Às vezes a mãe lhe aparecia em uma imagem difusa, uma fotografia debaixo da água. Era uma lembrança vulgar, apenas o registro de alguma existência e de algum cuidado que passou e que só existia agora nas palavras do pai a falar raramente sobre a esposa morta, sobre a mãe morta.

A menina daquele tempo, ainda sem precisar se esquecer de efetivos acontecimentos desgraçados, fixou as estrelas. O pai, ao seu lado, silenciado pelo momento, acompanhou a pequena no olhar. Não via beleza no céu, e escorregou os olhos até a menina deslumbrada, ele mesmo deslumbrado ali na Terra.

— Você lembra sua mãe, e ela está lá nas estrelas. Você pode ligar pontos entre as estrelas e desenhar o rosto dela.

A menina olhou surpresa para o pai.

— Sim, Pétria. Dá para desenhar qualquer coisa com as estrelas. Mais do que com as nuvens. As pessoas fazem isso há muito tempo.

O pai entrou e deixou a menina só. Pétria deitou-se no cimento mal-acabado. Um poste da rua jogava luz e atrapalhava a visão no quintal. A Lua cometia esse mesmo mal no céu, por isso a pequena se arrastou para o lado, para a proteção das sombras do muro. Lá em cima, entre as estrelas visíveis na grande cidade, uma se destacava, e Pétria elegeu essa brilhante como ponto de partida de tudo o que, a partir de então, passaria a existir no céu. Pela janela do quarto, o pai viu a filha estender o dedo e desenhar uma elipse. Fechou a janela. A menina recolheu o dedo ao peito e torceu o pescoço. Quando o dedo subiu novamente, no céu apareceu um triângulo logo atrás da elipse.

— Um peixe.

Depois apareceu um gato. Pétria pensou no gato da vizinha. O bicho roubava os peixes que seu Luís deixava no tanque de lavar roupas depois das pescarias, então ela apagou o gato do céu e procurou outra elipse, outro triângulo, e outras, e outros, até que, quando o sono chegou, o céu era um lago infinito.

O pai pegou a menina adormecida e a colocou na cama. Abriu uma fresta na janela e olhou através dela, confirmando a possibilidade de as estrelas poderem ser vistas por ali. Antes de sair do quarto, apoiou as duas mãos sobre o colchão de Pétria e forçou a cama, que provou sua resistência. A menina resmungou algo e continuou seu sono. Peixes nadavam em seu sono. Vagavam pelo céu os peixes, a menina e o próprio sono.

Quando a manhã veio, Pétria teve a certeza de que o céu era um lago. Choveu como se fosse verão, e a menina esperou entusiasmada pelo Sol, que veio e tilintou alguma esperança nas poças formadas no jardim. Então ela vasculhou entre a grama alta e as folhagens, mas não encontrou nenhum peixe. Sobre o muro, um miado, e a menina entrou chorando.

— O gato da dona Olga comeu todos os peixes.

— Que peixes? — perguntou o pai.

— Os que caíram do céu.

— Peixes não caem do céu, porque não existem peixes no céu.

— Existe, sim. Eu vi um monte deles ontem à noite. E eles caíram com a chuva.

O pai pegou uma folha de papel e um lápis e os entregou à filha.

— Faça um desenho.

Sem pensar duas vezes, e ainda chorosa, Pétria desenhou um peixe e mostrou ao pai, que pegou o papel e o rasgou ao meio. Foi a vez de a pequenina chover um verão, e a explicação do pai sobre desenhos não darem vida a nada não a convenceu. Ela pensava no quanto seria perigoso se tivesse mesmo desenhado mamãe nas estrelas. Talvez papai a rasgasse. Talvez o gato a comesse.

À noite, quando as estrelas voltaram, Pétria mostrou ao pai o primeiro peixe que ela desenhou. Tentava convencê-lo de que existiam peixes no céu. Ela apontou para a estrela mais brilhante e pediu que seu pai acompanhasse o movimento do dedinho.

— Viu? — Vitoriosa.

— Eu acho que aquilo não é um peixe. Na verdade, aquela estrela deve pertencer a outro desenho feito há muito tempo por outras pessoas.

O pai levou a menina para dentro e, sob o olhar atento dela, procurou em uma antiga enciclopédia algo sobre as constelações.

— Aqui está. Sirius. Eu acho que aquela estrela se chama Sirius, e faz parte da constelação do Cão Maior.

Voltaram ao quintal, e com olhos indo do papel ao céu, do céu ao papel, o pai confirmou o Cão Maior. Desenhou-o para a filha.

— Viu? — Professoral.

— Vi.

— A estrelona é como se fosse a coleira no pescoço do cachorro.

Pétria sorriu.

— Então os peixes estão seguros, porque o cachorro não vai deixar o gato comer eles.

— É isso.

Mais tarde, quando era hora de ir sonhar, o pai veio e se sentou na cama com Pétria.

— Papai, podemos comprar uma gaiola e um peixe?

— Como você vai manter a água na gaiola?

— Não sei.

— Peixes, em casa, ficam em aquários.

— Podemos comprar um desses e um peixe?

E o que se seguiu foi uma explicação adulta sobre o amor e sobre como as coisas funcionam na vida. Uma explicação bem simples: nada é de graça.

*

Cão maior, de Alessandro Thomé (Telucazu Edições, 176 págs.)

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