C om muita frequência a biografia atormentada de Van Gogh se sobrepõe a sua obra. E talvez seja de fato impossível deixá-la de lado. Afinal, a profunda angústia que o acompanha por toda sua breve existência — o pintor morreu com 37 anos, tendo deixado pouco mais de oitocentas telas e oitocentos desenhos e gravuras — pode encontrar, ao menos em parte, confirmação em sua obra. Contudo, quantas vidas não experimentaram sofrimentos semelhantes, sem que conseguissem revelá-los numa produção artística tão poderosa?

Sem dúvida, o pintor teve momentos de profundo sofrimento mental e o alcoolismo o rondou por toda a vida. O maior problema de se partir da constatação de uma alma perturbada para a compreensão da obra de um grande artista reside no fato de considerar os transtornos mentais uma substância indefinida que se projeta sobre telas e papéis prescindindo de todas as mediações lúcidas que um trabalho de arte pressupõe (1).

Desse ponto de vista, os problemas mentais — até hoje tão pouco compreendidos — serviriam como ponto de apoio para o esclarecimento de uma atividade que também não tem origem clara e conceitual. Como se esse aparente paralelo (o pouco conhecimento de ambos os processos) ajudasse em algo mais que não a mitificação das duas atividades.

Muitos artistas passaram por profundos sofrimentos mentais. Quase todos mantiveram momentos de maior ou menor lucidez justamente na luta para se expressar. A desconsideração dessa via de mão dupla não apenas petrifica as perturbações psíquicas como tende a reduzir o sentido de tantos trabalhos de arte ao “mundo interior” de mulheres e homens, a uma dimensão íntima. Quando lhes é negada a lucidez como condição para a criação artística, a abertura de suas obras para o outro e para a realidade tende a perder validade como uma ampliação do campo da experiência.

Antonin Artaud — um dos principais homens de teatro do século xx, além de poeta e ensaísta — procurou, no estudo provocativo e instigante Van Gogh: O suicidado da sociedade, libertar Van Gogh da condenação de louco. Artaud aparentemente inverte a posição em geral atribuída ao pintor holandês(2). De um indivíduo descontrolado, incapaz de manter relações com o mundo real, passa-se à condição de “gênio incompreendido”, “iluminado”, “consciência sobrenatural”. Invertem-se os sinais, mas, romanticamente, os artistas permanecem sendo espíritos distintamente elevados.

Van Gogh não morreu por causa de uma definida condição delirante, mas por ter chegado a ser corporalmente o campo de batalha de um problema, em torno do qual se debate, desde as origens, o espírito inócuo desta humanidade, e do predomínio da carne sobre o espírito, ou do corpo sobre a carne, ou do espírito sobre um e outro(3).

Nessa passagem o raciocínio vai mais fundo, pois realmente desde o Renascimento defendia-se a necessidade de se ocultar a arte com a própria arte. E, para que isso ocorresse, todos os elementos materiais envolvidos na realização de uma pintura (tinta, pincel, tela e mãos) precisavam ser sublimados, tornarem-se invisíveis para que o ideal neoplatônico de transparência — extremamente influente no período — se cumprisse.

Leon Battista Alberti, um dos maiores intelectuais do Renascimento florentino, dizia que os quadros eram janelas que se abriam para o mundo. Dificilmente haveria metáfora mais pertinente para a pintura da época, embora a usada por Leonardo da Vinci — “paredes de vidro” — não ficasse muito atrás. Com essas belas metáforas, que de fato correspondiam à pintura esplêndida do período, o corpóreo e o material deviam ser escamoteados por estarem no patamar mais baixo dos seres: o mundo terreno e vulgar.

As questões levantadas por Artaud nesse ensaio — escrito fora dos padrões tradicionais — não se limitam à mudança de uma análise psicológica para uma ação social repressiva exercida sobre o artista. Voltarei a ele no momento adequado.

Não é improvável que boa parte das lendas que envolvem o pintor holandês, a ponto de se tornarem quase uma verdade indiscutível, tenha origem num filme de 1956, Sede de viver, baseado na biografia romanceada e muito vendida de Irving Stone. O filme foi dirigido por Vincente Minnelli e George Cukor, com Kirk Douglas no papel de Van Gogh e Anthony Quinn fazendo Gauguin.

Não é um filme mal-intencionado. Começa quando do apoio de Van Gogh aos mineiros em greve no Borinage, e chega até seu suposto suicídio. Nele, embora o pintor tenha alguns momentos de fúria, não é um descontrolado que precisaria de internação constante e camisa de força. O filme carece, sobretudo, de discussões sobre arte. Algo que certamente seria maçante numa obra feita para ser sucesso de público — e realmente foi.

A loucura — consideremos por instantes essa hipótese — raramente é um bloco compacto sem abertura para os outros. A pior e mais enganosa consequência dessa abordagem estaria em apenas confirmarmos nos trabalhos do pintor suposições já dadas pela vida de, digamos, um artista, com o que desenharíamos um círculo, talvez coerente, mas de pouquíssima eficácia explicativa.

Harold Rosenberg, um dos principais críticos do chamado expressionismo abstrato — uma denominação que considerava equivocada, preferindo chamá-los action painters —, supunha que mesmo a pintura altamente gestual de Willem de Kooning ou Jackson Pollock era uma “pintura feita através de dificuldades” e via nos gestos do artista uma forte oposição à mera gestualidade.

E ironizava:

Quando um tubo de tinta é espremido pelo Absoluto, o resultado só pode ser um Sucesso. […] Seu gesto [do pintor] completa-se sem despertar sequer um movimento de oposição dentro do mesmo […]. O resultado é um papel de parede apocalíptico(4).

 

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(1) A notável médica Nise da Silveira, que desenvolveu um trabalho revolucionário com os internos do Engenho de Dentro, substituiu tratamentos violentos — como o uso rudimentar de eletrochoques — por atividades em ateliês de arte. Ela denominava o produto do trabalho dos internos (muitos dos quais chegaram a criar obras memoráveis) de “projeções de imagens do inconsciente”. Influenciada pela psicologia junguiana, via nas pinturas, desenhos e esculturas criados pelos pacientes um material para a compreensão da psicologia humana. Não tinha, acredito, a intenção de compreender os trabalhos de arte propriamente ditos.

(2) Antonin Artaud, Van Gogh: O suicidado da sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro: Achiamé, [s.d.].

(3) Ibid., p. 15.

(4) Harold Rosenberg, A tradição do novo. Trad. de Cesar Tozzi. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 19. [Grifo meu.]

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Van Gogh: A salvação pela pintura, de Rodrigo Naves (Todavia, 104 págs.)

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Rodrigo Naves nasceu em São Paulo, em 1955. É crítico, historiador da arte, professor e autor de diversos livros de ensaios e ficção, entre os quais A forma difícil (1996), O filantropo (1998), O vento e o moinho (2007) e A calma dos dias (2014).

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Ilustra o texto A Noite Estrelada, de Vincent van Gogh (1889). Óleo sobre tela, 74X92 cm. Museu de Arte Moderna de São Francisco (SFMOMA).

 

 

 

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