A gente sempre acaba se interessando pelas contas da casa. Claire tinha conhecido sua cota de melodrama, vivido anos agitados sem chegar nem perto da felicidade, mas quem consegue isso?, pensava ela. Ninguém mais vai ser feliz no Ocidente, pensava também, nunca mais, hoje em dia devemos considerar a felicidade como um sonho antigo; pura e simplesmente não há condições históricas.

Insatisfeita, e mesmo desesperada em sua vida pessoal, Claire tivera, contudo, intensas alegrias imobiliárias. Quando sua mãe entregou sua pequena e malvada alma a Deus — ou mais provavelmente a um nada —, o terceiro milênio havia acabado de começar, e era talvez, para o Ocidente antes qualificado de judaico-cristão, o milênio além da conta, no mesmo sentido em que se fala de um combate além da conta para um boxeador, em todo caso essa ideia se espalhou amplamente pelo Ocidente antes qualificado de judaico-cristão, enfim, digo isso para situar o contexto histórico, mas Claire estava pouco ligando para essas coisas, tinha outras preocupações na cabeça, antes de mais nada sua carreira de atriz — depois, pouco a pouco, as despesas de seu apartamento foram ocupando um lugar predominante em sua vida, mas não vamos nos adiantar.

 

Eu a conheci no réveillon de 1999, que passei na casa de um especialista em comunicação de situações de crise que havia conhecido no trabalho — na época eu trabalhava na Monsanto, e a Monsanto vivia mais ou menos permanentemente alguma situação de crise que exigia um plano de comunicação. Não sei como ele havia conhecido Claire, acho que na verdade não a conhecia, mas transava com uma amiga dela, enfim, amiga não é bem a palavra, digamos outra atriz que trabalhava na mesma peça.

Claire estava no início de seu primeiro grande sucesso teatral — que também seria, por outro lado, o último. A partir de então teve que se conformar com figurações em filmes franceses de baixo ou médio orçamento e em algumas peças de radioteatro na France Culture. Nessa época era a principal atriz feminina de uma obra teatral de Georges Bataille — bem, não era exatamente uma obra de Georges Bataille, aliás não era em absoluto uma obra de Georges Bataille, o diretor fez um trabalho de adaptação de diversos textos de Bataille, alguns de ficção e outros teóricos. Como declarou em várias entrevistas, seu projeto era reler Bataille sob a luz das novas experiências de sexo virtual. E se declarava especialmente interessado na masturbação. Não pretendia esconder a diferença, e mesmo a oposição, entre as ideias de Bataille e as de Genet. Tudo ia ser montado num teatro subvencionado na zona leste de Paris. Enfim, dessa vez se podia esperar importantes repercussões midiáticas.

Fui à estreia. Estava transando com Claire fazia pouco mais de dois meses, mas ela já estava instalada na minha casa, digamos que o quarto onde morava era bem miserável, o chuveiro que havia no corredor, que ela compartilhava com uns vinte inquilinos, era tão imundo que ela acabou se inscrevendo na academia do Club Med Gym só para tomar banho. Claire me impressionou muito mais que o espetáculo, exalava uma espécie de erotismo gélido durante toda a peça, a figurinista e o iluminador tinham feito um bom trabalho, não é que dava vontade de comê-la, mas sim de ser comido por ela, via-se que era uma mulher que podia ser tomada de uma hora para outra pelo impulso irresistível de comer alguém, e de fato era o que acontecia na nossa vida cotidiana, seu rosto não se alterava e de repente botava a mão no meu pau, desabotoava a braguilha em poucos segundos e se ajoelhava para me chupar, ou então a variante, em que tirava a calcinha e começava a se tocar, lembro que fazia isso em quase qualquer lugar, inclusive uma vez na sala de espera da secretaria municipal de impostos diretos, havia uma negra com duas crianças que parecia um pouco escandalizada, enfim, Claire fazia um suspense permanente em matéria sexual. A crítica foi unanimemente elogiosa, a peça mereceu uma página inteira na seção cultural do Le Monde e duas no Libération. Claire recebeu mais que o esperado nesse concerto de elogios, o Libération em particular a comparou com aquelas heroínas louras e frias de Hitchcock que na verdade são ardorosas por dentro, enfim, essas comparações tipo sobremesa norueguesa (gelada por fora, quente por dentro), que eu tinha lido dezenas de vezes e que me permitiam entender imediatamente de que se tratava sem nunca ter visto um filme de Hitchcock, eu sou mais da geração Mad Max, mas enfim, de qualquer forma era bastante adequado no caso de Claire.

Na penúltima cena da peça, que o diretor considerava explicitamente uma cena capital, Claire levantava a saia e, de pernas abertas para o público, se masturbava enquanto outra atriz lia um longo texto de Bataille que tratava fundamentalmente, pelo que me pareceu, do ânus. O crítico do Le Monde havia gostado sobretudo dessa cena e elogiava o “hieratismo” de Claire em sua interpretação. A palavra hieratismo me pareceu um pouco forte, mas digamos que ela estava calma e não parecia nada excitada — de fato, não estava nem um pouco, como me confirmou na noite da estreia.

Sua carreira, em suma, havia decolado, e essa primeira alegria se completou com uma segunda quando, num domingo de março, o voo af232 da Air France com destino ao Rio de Janeiro explodiu bem no meio do Atlântico Sul. Não houve nenhum sobrevivente e a mãe de Claire estava entre os passageiros. Uma equipe de assistência psicológica foi mobilizada imediatamente para atender os parentes das vítimas. “Aí provei que sou uma boa atriz…”, veio me dizer Claire na noite da primeira conversa com os psicólogos especialistas, “interpretei uma filha arrasada, aniquilada, acho que realmente consegui esconder minha alegria.”

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Serotonina, de Michel Houellebecq (Alfaguara, 237 págs.).

Trecho cedido pela Companhia das Letras.

Michel Houellebecq é considerado o melhor escritor francês da atualidade.

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