* Por Adauto Novaes *

Eu disse um dia e talvez com razão:
Da antiga cultura restará apenas um monte de
escombros, um monte de cinzas, mas haverá
espíritos que flutuarão sobre essas cinzas
(Wittgenstein)

Observação preliminar – O oculto fascina, escreve Jean Starobinski. Ao propor a retomada do pensamento a partir de todos os temas discutidos nos 30 anos de ciclos de conferências, buscamos dar sentido ao impensado. A proposta do novo ciclo é, pois, ir ao impensado dos ciclos anteriores através dos vestígios de coisas já pensadas. Ou, como define Maurice Merleau-Ponty, pensar o novo é buscar aquilo que se esconde entre o significado e a significação explícita. Percorremos, durante anos, vários temas importantes: as paixões, o olhar, o desejo, a política, a ética, a civilização e a barbárie… mas, como nos alerta ainda Merleau-Ponty, “nada, nenhum lado da coisa se mostra a não ser escondendo ativamente os outros… O invisível é o relevo e a profundidade do visível”. Ele diz ainda no ensaio ‘O filósofo e sua sombra’: “Não é, pois, o irrefletido que contesta a reflexão, é a reflexão que se contesta a si mesma, porque seu esforço de retomada, de posse, de interiorização ou imanência só tem por definição de sentido em relação a um termo já dado…” Ou seja, pensar é criar movimentos do espírito sobre si mesmo, o que leva a revelar “segredos” a partir da própria negação. Isso não quer dizer que as idéias trazidas pelas conferências dos ciclos anteriores estão superadas pelos novos acontecimentos: elas apenas se tornam frágeis se permanecerem presas a si mesmas; ganham mais certeza, mais potência de transformação, se sempre se apresentarem como passagem. Eis a incansável “luta das idéias contra os signos e dos signos contra as ideias”, como escreve Paul Valéry.

Duas fortes razões nos levam à retomada do que foi pensado nos 30 anos: 1) a filosofia é eterna rememoração da política, do sensível, do tempo, da história, incansável enriquecimento de significações, uma vez que “o mundo e o homem só se mantêm em movimento”, em transformações silenciosas; 2) vivemos hoje uma mutação – transformação radical – em todas as áreas da atividade humana. É preciso pensar este novo mundo.

1.mutações silenciosas
São trinta anos e mais de oitocentos ensaios de um trabalho lento de pensamentos testados, confrontados, jamais improvisados e jamais transformados em doutrina. Muitos deles foram gestados na sombra e no silencio impostos nos anos 60 e 70 no Brasil. Mas era também um momento de incerteza do próprio pensamento: surgiam os primeiros sinais de uma transformação também silenciosa. A década de 80 se anunciava como o momento crepuscular de uma civilização; para não cair nas armadilhas admiráveis da tecnociência, uma das origens das mutações, perguntávamos: o que pode haver ainda de humano no mundo que tende a ser dominado pela técnica? Os sinais do mundo da tecnociência já eram
latentes mas não tocavam explicitamente nossos sentidos e nossa consciência como acontece hoje. Eram apenas esboços imperceptíveis e quase invisíveis para nós. O filósofo francês Henri Bergson usa uma imagem que podemos adaptar à nossa pouca visão do que acontecia na época: a de uma fotografia que não foi ainda mergulhada no banho no qual ela se revelará. Era preciso criar este revelador.
Recorro ao prefácio da Fenomenologia do Espírito de Hegel para falar da passagem entre dois mundos: “Da mesma maneira que, na criança, após longa nutrição silenciosa, o primeiro sopro da respiração rompe – por um salto qualitativo – o caráter progressivo de um progresso que não era senão acréscimo, e assim a criança nasceu, assim o espírito que se forma, por uma lenta e silenciosa maturação, acede à sua nova figura, desagrega sucessivamente as parcelas do edifício que constituía seu antigo mundo. Apenas sintomas isolados indicam que o antigo mundo está sendo abalado; a frivolidade, o tédio que se instalam em tudo o que existe, o vago pressentimento de algo desconhecido, enquanto sinais precursores indicam que uma nova realidade começa a se instaurar. Este esfacelamento progressivo, que não altera a fisionomia global, é interrompido por um aparecimento que, como um raio, instala de um só golpe a figura do mundo novo”. O que nos resta é tentar responder ao enigma: o que é aniquilado e o que é conservado na mutação. Somos herdeiros de que história?
Vivíamos (e vivemos) entre dois mundos, um que no acabou inteiramente e outro que não começou inteiramente. Nesta ambivalência, éramos pensamento humanista mesmo que Michel Foucault já falasse do “fim do humanismo”. Não pensávamos em reabilitar o velho mundo, apenas repensá-lo, sem negar o legado prodigioso de um Mallarmé, de um Freud, de Schöenberg, Musil, Bérgson, Marx, Einstein e a relatividade restrita, Valéry, Proust, Wittgenstein, Sartre, Foucault… Quando nos lembramos de uma coisa que desapareceu, pensamos que suas ruínas ainda existem. Mas como pensar em um mundo e seu cortejo de coisas em decadência e nos “potentes esforços” de outro que quer nascer? Nosso problema era: sem abrir mão das mais brilhantes contribuições para o humano – o pensamento antigo, o Renascimento, o Iluminismo – pensávamos que, na fraqueza evidente que vivemos, muitos tendem a recorrer a certa visão de humanismo, na crença de poder curar a decadência através dele, como escreveu Robert Musil, evocando um “o estado pré-científico, a fé, a simplicidade, o humanitarismo, a obediência cívica”. Não era essa a nossa intenção. Nem mesmo a escolha entre as duas propostas muito comuns na época, descritas pelo filósofo Badiou no livro Le siècle: “O século foi pensado simultaneamente como fim, esgotamento, decadência e como começo absoluto. Parte do problema do século é a conjunção dessas duas convicções. Digamos de outra maneira: o século se concebeu a si mesmo como niilismo, mas igualmente como afirmação dionisíaca. Dependendo do momento, parece agir sob duas máximas: uma (hoje, por exemplo) é de renúncia, resignação, mal menor, moderação, fim da humanidade como espiritualidade, crítica das ‘grandes narrativas’. A outra, que domina o ‘pequeno século’, entre 1917 e os anos 80, retoma de Nietzsche a vontade de ‘dividir em duas a história do mundo’; propõe um começo radical e a formação de uma humanidade reconciliada”. O humanismo pedia assim para ser repensado. O anti-humanismo radical também, como veremos mais adiante.
Havia outro problema que, de certa maneira, ainda persiste: era preciso criticar uma tendência dos intelectuais que se dedicam ao “diálogo mudo do pensamento com o próprio pensamento”, porque aí encontramos pouca coisa; agindo assim, eles se recusam a ver o mundo tal e qual. É certo que existem, entre eles, bons comentadores de textos, mas é preciso também ir às coisas para extrair delas novos pensamentos. Por fim, como nos ensina Alain, um pensamento sem objeto é um “pensamento sem regras, tagarelice apenas, da mesma maneira que uma experiência sem julgamento jamais pode tocar as coisas”.
Outro problema a discutir: não mais preservamos a consciência das operações do espírito. Estaria o espírito se tornando coisa supérflua, como disse o poeta? Chegamos, enfim, ao prometido “artifício diabólico” (domínio da tecnociência) que, no lugar de espiritualizar a matéria, mecaniza o espírito? Questão difícil de ser abordada se sabemos que a tradição (Hegel) nos ensina que o espírito sempre se salvou do naufrágio através da história, das artes, da religião e da filosofia. Talvez este seja o caso hoje: o espírito se salva da massa do mundo técnico, da história natural dos nossos dias. Através das obras de arte e de pensamento, o espírito se faz ver.
Mais ainda: como enfrentar o abandono de uma das grandes conquistas da civilização moderna que foi a convivência – nem sempre pacífica, é verdade – da multiplicidade de doutrinas e ideais? Como síntese, Valéry nos diz que antes “ninguém poderia ignorar, em meio a altas temperaturas intelectuais, que havia sempre mais de uma resposta a qualquer questão especulativa”, e até isso se perdeu. Reina hoje o elogio do pensamento único.
Entre tantas questões, outra já se anunciava nesta mutação silenciosa: novos conhecimentos trazidos pela ciência e pela técnica fechavam o caminho da busca individual e da percepção. Um exemplo simples, quase ingênuo, mas que pode ser expandido para outras áreas: não é mais necessário olhar o céu e as nuvens porque a resposta está dada no celular: vai chover, vai fazer sol. Não é mais necessário buscar os sinais no céu! Quando a previsão falha, não é mais a nossa impotência diante da natureza que é posta em questão e sim a máquina. A linguagem ordinária dos sentidos dá lugar à linguagem da máquina. Ou, como observa Valéry, esta relação com a máquina é um “pacto comparável a terríveis engajamentos que liga o sistema nervoso aos demônios sutis da classe dos tóxicos. E mais a máquina nos parece útil, mais ela o torna; mais ela se torna útil, mais nos tornamos incompletos, incapazes de nos privarmos dela”.
É certo que isso dispensa o espírito da tarefa difícil de prever e libera a percepção de buscar as causas. Agir assim não é sem conseqüências: eis os indícios da nova religião fatalista, que domina hoje quase todas as nossas ações e que elimina a espera, a fantasia, a surpresa. E que principalmente tende a abolir o enigma das nossas primeiras “verdades”, cujas significações concretas nos escapam, e dos nossos primeiros e humanos erros, nossas experiências errantes, cálculos que nos levam a tentar pensar, pois é assim que se pensa, “lançando pontes sobre abismos”, como nos ensina Alain. Nada mais nos espanta, nem conseguimos ser mais ou menos que nós mesmos.
Este era o cenário que se desenhava 30 anos atrás.

2. Os sentidos
Sabemos que as paixões não cessam de dar objetos aos nossos pensamentos e assim surgiu o primeiro ciclo, Os sentidos da paixão. Era a primeira crítica ao dogmatismo que define as paixões apenas como coisas ilusórias e irracionais. Isso cria falsa independência dos diversos movimentos do espírito, o que deixaria escapar o que mais importa, como escreve Alain, que é “a relação da imaginação com os estados e movimentos do nosso corpo”, bem como a relação conflituosa das paixões e da imaginação com o pensamento. Aqui vale lembrar um dos aforismos de Robert Musil: a mais radical psicologia dos afetos é também a mais livremente inventiva. Ele conclui de maneira provocativa: “a vida é regrada sobre afetos e não sobre idéias! conforme aparição das idéias em forma de afetos”. A experiência, a observação e o julgamento rigoroso nos livram dos erros da imaginação uma vez que a percepção só se distingue da imaginação através dos laços de todas as nossas experiências pensadas. Mas é um jogo sem fim: “Na percepção mais rigorosa, a imaginação circula sempre; a cada momento, ela se mostra e é eliminada através de uma busca realizada, ou mesmo de uma pequena mudança do observador e, enfim, por um julgamento firme. O valor deste julgamento firme aparece principalmente no jogo das paixões: por exemplo, à noite, quando o medo nos espreita. Mesmo, durante o dia, quando os deuses correm de árvore em árvore. Podemos até entender isso: somos tão ágeis para julgar, partimos de indícios tão frágeis, que nossa percepção verdadeira transforma-se em luta contínua contra erros de acrobacia. Vê-se que não é preciso ir longe em busca da fonte de nossos devaneios”. (Alain, em Les passions et la sagesse).

Sabemos que o homem é todo inteiro paixões. Recorremos, na época, ao que diz Descartes no Tratado das paixões: as paixões estão na alma ainda que elas sejam do corpo. Tomemos como exemplo, a paixão do medo, um dos temas abordados no ciclo Os sentidos da paixão. Como nos diz ainda Alain, jamais olhamos com atenção “esta emoção, que é o estado nascente de qualquer emoção… não existe coragem sem medo, nem amor sem medo, enfim, nem sublime sem medo”. O que provoca medo no medo é aquilo que ele anuncia. O trabalho do pensamento consiste pois em regrar os desejos, as ambições, os temores; é preciso conhecer as paixões e suas causas para criar a arte de dominá-las. Buscar o controle das falsas percepções e ao mesmo tempo interrogar os hábitos, as injunções políticas, a ordem moral que nos levam a erros de interpretação da realidade e de nós mesmos. Começar assim a série de conferências consistia em ir à origem pensada das paixões que nos dominam. Nota-se, como observa Alain, que a filosofia é estritamente uma ética, e, por isso mesmo, uma espécie de conhecimento universal que, por seus objetivos, “diferencia-se, por seus fins, dos conhecimentos que têm como objeto satisfazer nossas paixões”.
Depois das paixões veio o ciclo O olhar – que propunha uma coisa simples: ver é mais do que o que se vê. Por exemplo: era preciso ver as grandes transformações que aconteciam. O problema é que muitas vezes somos capazes de ver a mudança mas incapazes de perceber o que acontece.
O terceiro ciclo deste começo foi ‘O desejo’.
As incertezas do momento nos levaram a outras reflexões: A ética, Tempo e história, Libertinos libertários, A crise da razão, O avesso da liberdade, O homem-máquina, A crise do Estado-nação, Civilização e barbárie, Muito além do espetáculo, Poetas que pensaram o mundo, O silêncio dos intelectuais, Ensaios sobre o medo, O esquecimento da política e outros temas. Foi assim o primeiro momento dos ciclos.
Assim nasceram os ciclos de conferências que reuniram centenas de pensadores de diversas concepções e tendências, uma verdadeira comunidade de amigos. A amizade foi nosso princípio. Seguimos o conselho de Bergson: “Um pensador antigo disse que, em uma república na qual todos os cidadãos fossem amigos da ciência e da especulação filosófica, todos seriam amigos uns dos outros. Ele não queria dizer com isso que a ciência põe fim às discussões e às lutas, mas sim que a discussão perde a acidez e a luta sua violência quando elas se dão entre ideias puras. Porque a ideia, no fundo, é amiga da ideia, mesmo da ideia contrária…”

3. Da crise à Mutação
A passagem para o segundo momento se deu naturalmente, ao percebermos a expressão clara de uma mutação antes silenciosa na sua manifestação. Passamos então a observar com mais evidência que, a partir dos anos 80, não mais existia área da atividade humana – política, costumes, mentalidades, artes, ética etc – que não estivesse sujeita a uma grande mutação produzida pela tecnociência, pela biotecnologia e pelo digital. Antes, podíamos recorrer ao termo crise para designar aquilo que pedia transformação. As crises – por em crítica – são constituídas de múltiplas concepções que se rivalizam e que dão valor dialógico às sociedades. Por isso, elas apontavam mudanças ocultas no interior de um mesmo processo. Já as mutações são passagens de um estado das coisas a outro. As transformações são contínuas nas coisas e em nós mesmos. Mas só percebemos as mutações se produzirmos, através da percepção e do pensamento, um encontro entre as transformações das coisas com as transformações de nós mesmos. Interpreto de maneira livre, certamente muito diferente do sentido dado por Bergson, a imagem de dois trens correndo lado a lado na mesma velocidade e na mesma direção, o que daria a impressão de imobilidade que permitiria a dois passageiros, cada um em um trem, dar-se as mãos. Acontece que as transformações das coisas e da consciência se dão em tempos muito diferentes. As “coisas” técnicas andam hoje em velocidade incontrolável, e nossa percepção, a política e a interpretação da história lentamente. Enquanto o “material da vida” passa por profundas e imediatas transformações, as convenções fundamentais da sociedade, “os costumes, as leis civis, o direito público, as noções, as entidades, os mitos essenciais que compreendemos sob os termos de Moral, de Política e de História permanecem quase intactos em aparência. Eles são mais ou menos depreciados aos olhos da inteligência que arruína sua substância metafísica; mas preservam sua potência prática e mesmo afetiva. Pode-se dizer que eles perdem seu sentido e guardam sua força”, escreve Valéry.

4. Entre a ordem e a desordem 
O ensaio de Valéry – A crise do espírito – resume bem a nossa perplexidade. Ele fala da morte da Civilização e de um Hamlet intelectual sucumbido sob o peso das descobertas, que sente o tédio de retomar o passado e a loucura de querer renovar sempre: “Ele vacila entre dois abismos, porque dois perigos não cessam de ameaçar o mundo: a ordem e a desordem”. Hamlet toma um crânio ilustre: “Este foi Lionardo. Ele inventou o homem voador, mas este homem voador não serviu precisamente as intenções do inventor: sabemos que o homem voador, montado no seu grande cisne (Il grande uccello sopra del dosso del suo magnio cecero) tem em nossos dias outras funções que não a de colher a neve no cimo das montanhas para jogá-la, nos dias de calor, nas calçadas das cidades… E este outro crânio é o de Leibnz, que sonhou com a paz universal. E este foi Kant, Kant qui genuit Hegel, qui genuit Marx, qui genuit… Hamlet não sabe o que fazer com todos esses crânios”.
Este é nosso cenário, que nos remete a outro problema: antes, as mutações eram precedidas de grandes ideais políticos e artísticos, que davam sentido a criações de obras de arte e obras de pensamento: eram mutações pensadas que legaram às gerações posteriores novos ideais humanistas: pensemos, por exemplo, na passagem do Renascimento ou do Iluminismo; mas as mutações que vivemos hoje são passagens sem pensamento que nos deixam à deriva, caminhos pouco visíveis, abertos não propriamente pelo pensamento mas pelo pragmatismo da técnica. Neste cenário, as idéias tornam-se impotentes, e a difusão desta crença é, como nos alerta Musil, um dos sintomas do declínio do ideal da razão, desfigurada também pelo liberalismo político. Assim, não sabemos dizer onde estamos nem para onde vamos. Entramos de costas em um novo e estranho mundo, inteiramente outro, que tende a apagar os vestígios do passado mas também não nos dá muita certeza do futuro. Herdamos, antes, enigmas. Em 1987, o poeta Yves Bonnefoy descreve assim o fim de uma era no poema Ce qui fut sans lumière:

Puisque c’est à la tombée de la nuit que prend son vol
l’oiseau de Minerve, c’est le moment de parler de vous,
chemins qui vous effacez de cette terre victime.
Vous avez été l’évidence, vous n’êtes plus que
l’énigme. Vous inscriviez le temps dans l’éternité, vous
n’êtes que du passé maintenant, par où la terre finit, lá,
devant nous, comme un bord abrupt de falaise.

O desafio de pensar estas transformações é imenso e pede conhecimento de todas as ordens. Mais: é enorme a dificuldade de perceber o que acontece em seu estado bruto e inaugural porque ainda estamos muito próximos dos acontecimentos. Outra imagem de Paul Valéry é perfeita para expressar a dificuldade que enfrentamos desde os primeiros ciclos sobre as mutações: “Os físicos nos ensinam que, em um forno incandescente, se nossos olhos pudessem subsistir, eles veriam – nada”.
Mesmo assim, entramos na aventura do ver.

5. Mutações, ano 10
Até agora foram dez ciclos sobre as mutações: Novas configurações do mundo; Vida, vício, virtude; A condição humana; A experiência do pensamento; A invenção das crenças; Elogio à preguiça; O futuro não é mais o que era; O silêncio e a prosa do mundo; Fontes passionais da violência e O novo espírito utópico.
Muitas foram as hipóteses que serviram de ponto de partida para o trabalho de pensamento sobre as mutações. Mas uma delas se destaca: é como se a vontade de poder tomasse um rumo diferente. Aquilo que Nietzsche define como vontade de poder e que se encarna, de início, no criador – o poeta, o pensador – toma outro rumo no próprio Nietzsche, o que nos leva a pensar de maneira pouco convencional hoje: o sujeito da história não seria mais o homem e sim a técnica. O livre espírito seria uma figura de transição. O homem das Luzes, que antes andava com prudência, na realidade, segundo comentário de Eugen Fink, “lança-se além de toda realidade fixa, sem fronteiras, cuja desconfiança e frieza significam apenas o Não que abre caminho a um Sim que virá. As Luzes de Nietzsche exercem-se também contra elas mesmas, não acreditam ingenuamente na razão, no progresso, na ciência. A ciência é para elas apenas um meio para por em questão a religião e a metafísica, a arte e a moral”. Uma citação de um dos aforismos publicado com o título de Vontade de poder não deixa dúvidas: “Você sabe o que é o mundo para mim? É preciso que o mostre em meu espelho? Este mundo: uma massa enorme de força, sem começo nem fim… eterna criação de si, eterna destruição de si, ‘além do bem e do mal’, sem finalidade… Você quer um nome para esse mundo, uma solução para todo o seu enigma? … Este mundo é a vontade de potência – e nada mais. E você é esta vontade de potência – e nada mais”. Por fim, outro fragmento que nos esclarece e que lemos como uma previsão do que acontece: “O que é grande no homem é que ele é uma ponte, não um fim; o que nele é amado é que ele é uma passagem e um declínio” (Zaratustra). Seria uma referência à possibilidade suprema do homem de lançar a ponte do humano ao póshumano? Vivemos uma contradição entre a ciência-saber e a ciência-poder. É inegável o domínio da ciência-poder.
Günther Anders, filósofo alemão que foi o mais implacável crítico da civilização técnica americana e que escreveu dois livros sobre a obsolescência do homem, vai além ao anunciar aquilo que os pós-humanos tomam hoje como verdade: a ciência como vontade de poder: “Enquanto a guerra nuclear significa o aniquilamento dos seres vivos, entre eles o homem, a ‘clonagem’ significa o aniquilamento da espécie humana para a produção de novos tipos humanos. A questão que põe a antropologia filosófica, a da ‘essência do homem’ (Scheler)… mesmo se fosse para rejeitá-la radicalmente respondendo que ‘a essência do homem consiste em não ter essência’, esta questão poderia perder todo o sentido se o homem fosse utilizado ad libitum como matéria prima”. Somos “semelhantes a Deus”, conclui Anders, mas na realidade no sentido negativo, uma vez que não se trata de “creatio ex nihilo”, mas antes passamos a ser “capazes de uma total ‘reductio ad nihil’, uma vez que, como destruidores, tornamo-nos verdadeiramente onipotentes… Podemos fazer desaparecer o conjunto da humanidade e do mundo humano.” Eis um argumento forte da vontade de poder ligada à ciência e à biotecnologia. O que é, enfim, este homem que, além das transformações biológicas, procura abolir o espírito ou, na melhor das hipóteses, transformá-lo em coisa supérflua, como advertiu o poeta Valéry?

6. O que fazer 30 anos depois?
Passados 30 anos, voltemos, pois, o olhar para nossa trajetória inicial, seguindo o preceito primordial do pensamento: a retomada daquilo que já foi pensado. O pensado guarda sempre um tesouro latente de sombras e lacunas. Ainda mais quando o pensamento é cercado de tantas mutações, muitas delas à revelia do próprio pensamento porque produzidas pela tencnociência. Assim, entendemos Alain ao nos dizer que pensar é dizer não. Isso porque o filósofo trabalha com coisas incertas, que vêm à
expressão em meio a tantas outras expressões silenciadas. Às vezes temos a sensação de que os conceitos estão defasados. É certo que o pensamento acumulado guarda consistência. Mas, sem renegar as preciosas contribuições dos pensadores que participaram dos ciclos, voltemos a pensar de outra maneira os temas inicialmente propostos, de Os sentidos da paixão (1986) a O novo espírito utópico. É este o tema do ciclo “Mutações – Entre dois mundos -30 anos de experiência do pensamento”. As mutações nos pedem para repensar os próprios conceitos. Os antigos já não dão mais conta para explicar a nova realidade.
Dou apenas alguns exemplos do que nos espera no ciclo dos 30 anos:
Os sentidos da paixão – Tomemos, como exemplo, a questão posta por Günther Anders no ensaio O ódio na era do irrefreável desenvolvimento técnico. Os militares que lançaram bombas em Hiroshima ou aqueles que hoje manipulam os drones “se atribuem mesmo uma atitude virtuosa, talvez cristã, ao realizar suas ‘missões’ sem ódio… Quanto mais distante está o inimigo, mais difícil e mais improvável se torna ‘natural’ o nascimento do ódio”. Seriam ações desapaixonadas? Eis uma questão que pede resposta.
O olhar – É certo que somos dominados por imagens na televisão, nas ruas, principalmente no celular e nos computadores (4 bilhões de filmes são acessados a cada dia em todo o mundo), mas elas são vistas na velocidade de um foguete. É um olhar sem vontade de ver e sem desejo de pensar diante do desaparecimento da idéia de duração. Ora, como já foi dito, ver é mais do que o que se vê. Wittgenstein aponta para outro problema bem mais comum: a contradição entre a compreensão do objeto e aquilo que os homens querem ver. Daí o problema: “O que está mais próximo pode justamente tornar-se o que existe de mais difícil de compreender. Não é uma dificuldade do entendimento, mas uma dificuldade que diz respeito à vontade, que é preciso superar”.
O desejo – Somos uma sociedade que tende a abolir os desejos (os afetos, a amizade, a liberdade ou mesmo a sexualidade em seu sentido mais amplo e não apenas natural)? O ser, como consciência de si, pressupõe o desejo, como nos lembra Kojève. Contra o simples conhecimento que mantém o homem em uma quietude passiva, diz ele, “o Desejo o torna in-quieto e o leva à ação… Para que haja consciência de si, é preciso pois que o Desejo recaia sobre um objeto não-natural, sobre algo que supere a realidade dada. Ora, a única coisa que supera este real dado é o próprio Desejo”. Assim, o Desejo é diferente da coisa desejada. Assim é o desejo de liberdade, que é muito mais do que a liberdade como coisa conquistada.
Libertinos libertários – O etnólogo Pascal Dibie fala da nova realidade nos domínios da sexualidade. Estaríamos entrando em nova fase libertina ou simplesmente na abolição da sedução e do desejo. Desejar é saber o que se deseja, a menos que se queira permanecer na “noite natural”. Lemos em Hegel que “A liberdade pede que o sujeito consciente de si não deixe subsistir sua naturalidade”. Ou, como escreve Alain, “o ser que não tem consciência não tem desejo porque ele não é dividido”. O “desejo”, como todas as coisas do mundo hoje, teria se transformado em coisa mecânica que recai apenas sobre um “objeto” natural, como se tende a pensar com o que segue?: “Desde que a sociedade de consumo se instalou profundamente, o sexo, como a coca-cola e as férias, tornou-se ‘produto’ a consumir apenas pelo prazer do consumo. Seria por que ‘o coito é o último lugar de natureza pura (bruta) em um mundo artificializado e urbanizado’ como dizia um psicanalista? Um pouco talvez entre os mais velhos, mas parece que o sexo, sua prática, para os jovens entrou na prática da comunicação da globosfera, alternando entre virtual e realização… Então, a presença, nossa presença, torna-se secundária a tudo o que fazemos… É isso aí: uma rápida pesquisa no smartphone, no Tinder, no Adolf, no OKCupid, Happn ou IceBreaker, alguns aplicativos por geolocalização para ver quais homens, quais mulheres estão à disposição com o mesmo desejo de realização imediata… Encontro para uma bebida em um lugar público, vai-se a casa de um ou a um motel, uma hora de diversão sem troca de telefone, justo uma trepada. Um ‘fast sex’… Na França são até agora cerca de 38% os que se utilizam dos sites para encontros deste tipo em 2015. Não é preciso se tocar para gozar”. (Os dados foram publicado pela revista Le nouvel observateur).
O esquecimento da política – É certo que um dos pressupostos fundamentais da mutação política está no papel atribuído à tecnociência. Uma frase do filósofo alemão Martin Heidegger, sujeita a muitas e contraditórias interpretações pela sua radicalidade, dá a pensar: “É para mim uma questão decisiva hoje: como um sistema político – e qual – pode, de maneira geral, ser coordenado na era da técnica. Não sei responder a esta questão. Não estou convencido de que seja a democracia”. A ciência e a técnica produziram, na política e no pensamento, aquilo que os teóricos definem como o mundo da especialização. As sínteses teóricas permitiram, durante séculos, grandes realizações, mas hoje, com a crise dos ideais políticos, restam apenas as desvantagens de uma “democracia dos fatos”. A definição é de Robert Musil: a política, tal como a entendemos em nossos dias, é o contrário absoluto do idealismo, quase sua perversão: ao levar em consideração apenas os fatos, “o homem que especula por baixo sobre seu semelhante. Aquele que se intitula político realista só tem por reais as baixezas humanas, única coisa que considera confiável; ele não trabalha com a persuasão, apenas com a força e a dissimulação”.
Outro filósofo, nosso contemporâneo, e participante de todos os ciclos sobre as mutações, vai além na observação: para Jean-Pierre Dupuy, é presunção fatal acreditar que a técnica, que tomou o lugar do sagrado, do teatro e da democracia, poderá desempenhar o mesmo papel que eles desempenhavam na época em que a capacidade de agir dizia respeito apenas às relações humanas.
Francis Wolff dá sua interpretação: os utópicos de ontem foram substituídos pelos especialistas de hoje. Não disputamos mais os fins políticos, afirma Wolff, discutimos, sim, os meios e os fins técnicos.
O domínio da técnica sobre a política leva à perda dos fundamentos políticos, isto é, daquilo que a filosofia política criou e recriou ao longo da história como resposta às interrogações levantadas pelo advento da sociedade, ou melhor, a ideia e a prática que definem a sociedade como origem da lei e dos direitos. Era o momento em que a práxis tinha uma relação estreita com os princípios teóricos, muitas vezes para negá-los. Hoje, vivemos aquilo que já se definiu como “o princípio do sem princípio”. Mais: sendo apenas partes da vida social, a economia, a privatização da vida pública, a religião, o moralismo e a eficiência técnica procuram ocupar o lugar da política de maneira totalizante. É a escandalosa e inconseqüente busca da hegemonia de uma dessas variantes sobre a política. Esta tendência dominante hoje abole todos os princípios políticos. Como observa o filósofo Newton Bignotto, retomando Hannah Arendt, parecemos condenados a oscilar entre democracias apáticas, comandadas exclusivamente pelas forças de mercado, e regimes autoritários. Enfim, como fica a prática da representação política quando sabemos que os partidos e os sindicatos perdem força diante das novas formas de comunicação e (des)organização através dos meios eletrônicos?
Estes são apenas alguns exemplos possíveis. A ideia é dedicar uma conferência para cada um dos temas tratados nesses 30 anos. Mas, por razões que não pedem maiores explicações, gostaríamos de começar pela amizade.

7. Mutações 2016
O ciclo Mutações de 2016 terá 25 conferências em cada Estado (Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e Brasília), 18 brasileiros e 7 franceses. Eis os temas e conferencistas propostos. Alguns nomes podem ser alterados em função dos temas:

1.A amizade – Francis Wolff
2.Os sentidos da paixão – Marilena Chaui
3.O olhar – João Carlos Salles
4.O desejo – Maria Rita Kehl
5.Ética – Franklin Leopoldo e Silva
6.Tempo e história – Marcelo Jasmin
7.Artepensamento – Antonio Cicero
8.Libertinos libertários – Pascal Dibie
9.A crise da razão – Oswaldo Giacoia Jr.
10.A descoberta do homem e do mundo – Lilia Schwarcz
11.A outra margem do Ocidente – David Lapoujade
12.O avesso da liberdade – Guilherme Wisnik
13.O homem-máquina – Jean-Michel Besnier
14.Civilização e barbárie – Newton Bignotto
15.Muito além do espetáculo – Eugênio Bucci
16.Poetas que pensaram o mundo – José Miguel Wisnik
17.O silêncio dos intelectuais – Marcelo Coelho
18.Congresso internacional do medo – Jean-Pierre Dupuy
19.O esquecimento da política – Frédéric Gros
20.Novas configurações do mundo – Luis Alberto oliveira
21.A condição humana – Pedro Duarte
22.A invenção das crenças – Renato Lessa
23. vida vicio virtude – Vladimir Safatle
24.A experiência do pensamento – Olgária Matos
25.Elogio a preguiça –
26.O futuro não é mais o que era – Elie During
27.Fontes passionais da violência – Jorge Coli

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Adauto Novaes é filósofo, organizador do Ciclo Mutações, que acontece no Ssec Vila Mariana

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