* Por Rafael Gallo *

Após mais de um ano partilhando algumas de minhas leituras aqui, com vocês, sinto dizer que esta é minha última coluna do Na pilha de leituras, da São Paulo Review. Para mim, foi um prazer muito grande escrever esses textos e só tenho a agradecer a quem leu e ao Alexandre Staut, organizador da revista, que me convidou. A razão por eu querer parar agora é a vontade de focar na escrita de meu romance – estou quase terminando! – e em outros aspectos da vida pessoal.

Mas vamos falar de livro, que é o que interessa aqui. Assombrações (Editora Todavia, 2018) é o segundo romance de Domenico Starnone publicado no Brasil, após o sucesso de Laços. Ambos têm traços bastante semelhantes: o foco em questões familiares, a economia de personagens e cenários, a prosa elegante de Starnone e a experiência agradável para o leitor, que tenderá a ler rapidamente os livros.

Confesso que gostei um pouco mais do anterior, Laços, do que deste, mas Assombrações é ótimo também. A história orbita ao redor de Daniele Mallarico, um ilustrador já idoso, às voltas com a finitude da própria vida e obra. Convalescente de uma cirurgia, ele é convocado pela filha, Betta, para ir até a cidade onde ela mora, cuidar do filho dela, neto dele. A cidade é Nápoles, a mesma onde o próprio Daniele cresceu e Betta vai viajar com o marido, Saverio, para um congresso.

É um enredo bastante simples, mas Starnone tem como característica justamente a utilização dessas trivialidades para abordar conflitos importantes. Daniele vive bastante alheio à família (praticamente desconhece o neto e a situação atual da filha; mais tarde, revela-se que sua relação com a esposa também foi distante) e, além disso, tem de lidar com uma encomenda de trabalho que logo se mostrará problemática. Convidado por um jovem – e aparentemente arrogante – editor, tem de ilustrar o conto A bela esquina, de Henry James, para uma nova edição. Só que ele não consegue resultados que satisfaçam ao editor, a si mesmo, ou mesmo ao neto, que vê os esboços. O velho ilustrador, sentindo-se obsoleto, o jovem editor com poder e o neto na infância, essas três personagens já demarcam um dos temas do livro: os conflitos geracionais, entre pessoas de tempos e realidades diferentes.

Há ainda o casamento em crise de Betta e Saverio, as diferenças sociais estabelecidas com a empregada doméstica da casa, Salli, e com os vizinhos cujo filho é amigo de Mário, o neto de 4 anos. Falando nele, é preciso destacar o quanto seu relacionamento com o avô – ao longo dos dias em que Daniele cuida dele – torna-se o eixo narrativo principal do livro. O garoto parece um adulto em miniatura, com sua capacidade de aprendizado exacerbada e seus conhecimentos já adquiridos. É na relação entre essas duas personagens tão opostas, e ambíguas, que a história se desenvolverá em grande parte e lidará com seus temas.

Temas ou fantasmas? Daniele é cercado por eles – é inclusive um fantasma de si próprio – e esse retorno à cidade onde cresceu, à casa onde também viveu, à proximidade da família e a lembranças afetivas que o farão questionar a própria identidade e lugar no mundo. Para quem quiser ler Assombrações, recomendo também a leitura do conto de Henry James, citado no romance. Há muitas ressonâncias entre as duas histórias, que enriquecem a percepção de ambas. Se no conto de James o protagonista encontra uma versão de si mesmo, de quem poderia ter sido, no romance de Starnone, o protagonista parece justamente se desencontrar da versão de si mesmo que acreditava ser a real.

Trecho:

“Tinha razão, meu pai era conhecido em todo o bairro por isso, jogava tudo, tudo o que tinha, e não para ganhar – raras vezes ganhava -, mas só por aquilo que chamava de calafrio, o calafrio das cartas entre as mãos, olhadas de viés, chupadas, uma matéria viva e mutante sob os dedos que tentavam plasmá-la segundo o desejo e a espera, que quase a reinventavam. Eu odiava aquele homem. Toda a minha infância, toda a adolescência haviam sido um esforço permanente para achar um jeito de quebrar a corrente da descendência. Queria individualizar um traço meu, só meu, que me permitisse desvencilhar do sangue dele. E o encontrara na capacidade de refazer qualquer coisa com o lápis. Mas quando mostrei aquela habilidade a Mena, num primeiro momento ela ficou boquiaberta, e em seguida começou a zombar de mim. Dizia: acha que nos reduzir a bonecos – eu, todo mundo – torna você melhor do que a gente?”   

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Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol.

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