* Por Rafael Gallo *

O novo romance de João Anzanello Carrascoza, Elegia do irmão (Ed. Alfaguara, 2019), é mais um mergulho do autor na perda – em especial, de alguém muito próximo – e na brevidade da vida. São temas bastante recorrentes em seus contos e romances lançados até agora. O que esse novo trabalho parece apontar é que, se o mote não é exatamente inédito, as formas de composição e de manuseio da linguagem assumem papel central na criação de novas possibilidades literárias.

Portanto, não é nada recomendável entrar nesse livro com a expectativa de se encontrar um grande encadeamento narrativo – uma “história”, por assim dizer, com eventos transformadores, etc. – ou o aprofundamento na caracterização das personagens. “Elegia” é composto por fragmentos, cenas ou fluxos de pensamentos que, em grande parte, mais se assemelham à poesia do que à prosa, enquanto composição. Aliás, é bom lembrar que o próprio termo elegia se refere a uma forma poética, utilizada, geralmente, em cantos musicais dedicados ao lamento pela morte de alguém. O que temos, em grande parte, nesse livro, ainda que escrito em forma de prosa (há também capítulos que assumem a estruturação em versos) é o canto triste desse narrador-protagonista, nunca nomeado, dedicado à irmã, Mara, que, acometida de uma doença fatal – tampouco nomeada – coloca a todos na posição de lidar com sua morte, iminente na primeira parte e consumada na segunda.

Cada capítulo traz lembranças de outros momentos das vidas dos irmãos – cenas da infância, adolescência, o passado recente – ou o embate do protagonista com pensamentos e questões do presente, afetados pelo luto em relação à irmã. São “instantâneos”, quase independentes entre si, no tocante à continuidade. Os avanços narrativos, como a progressão da doença e do tratamento, são colocados apenas em breves pinceladas ao longo dos capítulos, ao redor do “canto triste” do protagonista, em uma espécie de pontilhismo muito esparso. Alguns dos melhores momentos dos livros se dão quando esses eventos se conectam, feito uma estrofe que retoma um leitmotiv anterior, tal qual a cena, bem adiante no livro, onde vemos a irmã doente comprar, em um esforço de vida, o incenso com que o protagonista inicia o livro.

Depois de ter acompanhado grande parte do trabalho de Carrascoza – li quase tudo que ele lançou – “Elegia” me pareceu como uma proposta (bem-sucedida) de atar as pontas do trabalho dele com a brevidade (enquanto tema e também forma) e as narrativas estendidas. Na linhagem que abarca diversos experimentos com as narrativas breves, desde Linha única (Ed. Sesi, 2016) – coleção de microcontos que, como o título indica, possuem só uma linha de texto – até obras como a Trilogia do adeus (Ed. Alfaguara, 2017) – conjunto de três romances unidos pelo mesmo núcleo de personagens e por similaridades estilísticas e temáticas – Elegia do irmão parece representar o elo entre a fundação estrutural de Linha única – concentrada em uma “molécula temática”, da qual nunca se afasta – e a narrativa longa, equivalente em desenvolvimento da linguagem e ampliação de aspectos do tema aos romances da Trilogia do adeus.

Por conter esse percurso em si, talvez Elegia do irmão não seja o livro que mais indico para quem nunca leu nada do autor. Claro que se quiser dar uma olhada nele na livraria, é bem grande o risco de a beleza das passagens te convencerem a levá-lo consigo (e, aposto, se outra pessoa abri-lo na sua casa, em qualquer página, vai pedir emprestado na hora), mas eu acho que é um livro cuja leitura – e compreensão do projeto – pode ganhar muito se você tiver lido antes, ao menos, um dos outros romances e livros de contos do Carrascoza. Se aceitam minha sugestão (ei, esse é todo o propósito dessa coluna), podem começar pelo volume de contos Dias raros (Ed. Sesi, 2017) ou pelo romance Caderno de um ausente (integrante da Trilogia do adeus), que são ambos maravilhosos e podem conduzir a um melhor aproveitamento do “Elegia”. Qual escolher? Fique com os três, na minha opinião. E já que vai ler o primeiro dos volumes, embarque nos outros dois da “Trilogia do adeus”. Cabe mais um na conta? Pegue o “Aquela água toda” (Ed. Alfaguara, 2018), que é ótimo também. Ah, e o Espinhos e alfinetes (Ed. Record, 2010), outra coleção de contos excelente. E já mencionei Aos 7 e aos 40 (Ed. Alfaguara, 2016), o primeiro romance dele? É muito bom também. Ok, parei. Deixo o trecho do Elegia do irmão abaixo, que diz tudo sobre o trabalho do Carrascoza.

Trecho:

“O atentado contra a nossa felicidade aconteceu quando Mara voltou do consultório, sentou-se à mesa da cozinha da casa onde moramos e acendeu um cigarro — a explosão estava represada no envelope dos exames que ela levara ao médico, mas, em questão de silêncio, sairia num minuto de sua voz para arrebentar as fundações da família. Os estilhaços se espalharam com tal violência que laceraram todos nós, mas em mim não causaram, igual na mãe e no pai, um ferimento único e profundo como só um caco de vidro grosseiro é capaz de fazer; não, em mim foram lançados milhares de fragmentos pontiagudos que jamais seriam extraídos, porque se transformaram no tecido dos meus próprios ossos e músculos. Eu sou o seu irmão, eu estou na frente dela dois anos, eu não sou um escudo, embora, desde a nossa infância, tenha agido como o seu guardião, eu a protegia, era o que pensava, até aquele instante em que o mundo veio nos dizer não, o mundo, naquela manhã, dinamitou sem arma alguma o meu destino, o mundo, pelas palavras dela, ditas quase num sussurro, tanto que a mãe teve de perguntar, O quê?, não entendi, fala mais alto, e o pai, Como? Dá pra repetir, filha?, e eu, eu que tinha ido à cozinha pegar uma xícara de café, eu não disse nada, o mundo ruiu instantaneamente pelas palavras de Mara, e eu fiquei perdido no rosto dela, procurando a mentira em seus olhos azuis, mas o quase imperceptível roçar de um de seus lábios no outro me entregou, em puro e inclemente mutismo, a verdade.”

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Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol.

 

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