
* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *
Dois acontecimentos e uma proposta:
- Em 2018 o Exame Nacional do Ensino Médio [ENEM], corajosamente, apresentou uma questão que o enunciado trazia um trecho de um texto no pajubá – a língua LGBTQIAP+ – com o objetivo de discutir possibilidades de variações de linguagem[1]. Não demorou nem o término da hora da avaliação para a questão ser tomada como cabo de guerra nas redes sociais. De um lado conservadores que gritavam que o ENEM, comunista e gayzista, tentava empurrar goela abaixo a ‘ideologia de gênero’ por meio da educação das “criancinhas indefesas”. Do outro, a militância defendia a questão como forma legítima da expressão de uma linguagem. O resultado do caos que se instalou por conta da questão foi uma patrulha maior, dentro do próprio MEC e articulada pelo governo bolsonarista em seu primeiro ano de “desgoverno”, da prova do ENEM e temor de censura na prova nos anos seguintes.
- Em 2020 o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo incluiu a palavra ‘todes’ em uma das suas publicações no Twitter[2]. Não tardou para a chuva de críticas dos conservadores de que nem o museu da língua portuguesa conhecia e respeitava o português correto e ofendia a norma culta do idioma em favor de “ideologias de gêneros” que são contra os princípios da tradicional família brasileira. O museu saiu em sua defesa, e também da língua portuguesa, argumentando, que assim como qualquer idioma a língua portuguesa é uma língua viva e dinâmica. A inclusão do gênero neutro na língua é apenas o movimento vital de uma língua dinâmica e atenta as reivindicações de uma sociedade.
Há algo de comum em ambas as situações que eu trouxe acima: o ódio à linguagem LGBTQIAP+ que, em verdade, é o sintoma do ódio as existências dos corpos dissidentes de gêneros e sexualidades hetero-cis-normativos.
O teórico francês, Roland Barthes (1915-1980), trouxe algo interessante sobre a língua quando diz que “a língua é fascista”. É uma afirmação forte, e logo podemos interpretar, o quanto a normatização exagerada e imposição de regras gramaticais rígidas e imutáveis de um idioma podem trazer juntos um autoritarismo e uma opressão sem limites. Trazendo para mais próximo de nós o professor Marcos Bagno, em seu livro o “Preconceito linguístico” (1999), nos faz refletir sobre como há uma série de mitos que pairam o imaginário da sociedade brasileira sobre a língua portuguesa. Os mitos apontados por Bagno nos faz pensar que formas de falar, escrever e dizer em português diversas possam parecer erradas e esbarram fortemente em um preconceito linguístico violento, separando os “cultos” dos “incultos”. Os incultos, segundo denuncia Bagno, precisam ligeiramente ser domesticados pelos cultos por violarem a gramática normativa. Uma falácia. Uma língua, seja ela qual for, é uma expressão cultural viva e dinâmica de um povo e que está em constante mudança, adaptação e movimento. Podemos tomar a imagem de que a língua funciona como um jogo de peças, que dependendo da circunstância e objetivo, pode ser montada, desmontada e remontada tomando formas diversas para a sua função de comunicação e expressão humana. A dinâmica de uma língua se dá por meio dessas relações humanas em constantes tensões de disputas políticas, histórico, social e cultural. Assim, a língua é, antes de mais nada, uma criação cultural e política de um povo resistente e que inventa sua nova existência. Ou seja, o movimento interno de uma sociedade na construção e reconstrução de palavras dentro de um idioma é um ato político importante.
Essas tensões não são simples. Recentemente sofri, junto a outros colegas, um ataque contra a inovação linguística em um evento universitário. No evento, discutíamos as implicações dos crimes de ódio virtual quando um grupo nos atacou contra o uso da linguagem neutra quando, ao me apresentar ao público, verbalizei um “Boa noite a todos, todas e todes”. O ‘todes’ na fala foi o suficiente para despertar o ódio e ataques daqueles que se apresentam como guardiões do preciosismo da língua portuguesa. As alegações do grupo contra eram as mesmas aos ataques do museu da língua portuguesa: de que não fazia parte da normal culta da língua e ainda que o uso de tal maneira era uma imposição de uma ideologia de gênero e sexual que queríamos para toda a sociedade. A confusão foi tamanha por conta dessa temática do gênero neutro que a proposta central do evento não foi discutida. O irônico da situação no evento é que os guardiões ferrenhos da língua portuguesa não se manifestaram contra o uso das palavras “chat”, “meeting” ou “live”, palavras de outra língua, incorporadas sem crítica ao vocabulário cotidiano da língua portuguesa. A questão da indignação não passa próxima a uma defesa da pureza da língua portuguesa como alegam, mas especificamente a inclusão de pronomes que possam possibilitar o reconhecimento de diversidades de expressões de gêneros e sexualidades humanas, ou seja, o que está por detrás desse movimento é o ódio as populações LGBTQIAP+ e os direitos humanos legitimados e conquistados por nós.
O que digo aos estudantes, como professor, sobre diante dessa disputa? Que possibilitem empatia. Se desconhecem algo, que mergulhem na leitura para conhecer o outro. A literatura contemporânea tem possibilitado uma imersão importante para conhecer o universo LGBTQIAP+. A leitura de literatura permite esse movimento empático com os outros corpos. Sobre a linguagem LGBTQIAP+ um livro importantíssimo foi publicado em 2021: o “Neca” da escritora, doutora em teoria literária, professora Amara Moira.
Em “Neca + 20 poemetos travessos” a escritora Amara Moira dá um novo status luminoso ao pajubá o tornando oficialmente parte da literatura brasileira. O primeiro texto, “Neca” é um monólogo de uma travesti que desanda a falar sobre acontecimentos ordinários do seu cotidiano. O genial do texto de Moira não são os acontecimentos narrados pela personagem, mas o fato de despertar no leitor ou na leitora o faro de tradutor para que possa penetrar no universo da narradora para descobrir os segredos do que está dizendo. Há um pacto que Amara faz com o leitor ou leitora em “Neca” que é a revelação do segredo se o mesmo se dispor a conhecer o universo travesti. Ou seja, para entender o que a narradora diz é preciso se despir de você e se vestir de décadas de história travesti, opressões, violências, vivências e criações para que “Neca” faça algum sentido. A obra continua com mais 20 poemas sendo 14 deles inéditos seguindo o uso avassalador do pajubá na composição.
Amara não é inocente em escrever “Neca” apenas como uma maneira de entretenimento literário e panfletagem LGBTQIAP+. A escritora é leitora profunda de James Joyce e Guimarães Rosa escritores que por meio da literatura subverteram suas línguas. As obras de Joyce e Rosa são leituras obrigatórias em qualquer curso de Letras que se preze com o objetivo de que o estudante possa conhecer a pluralidade das línguas registradas por escritores. Entretanto, pouco se lê nos cursos de Letras outras pluralidades de expressões linguísticas, por exemplo indígenas (milhares!) e o pajubá, pois são consideradas menores ou pouco “chiques”. Estou sendo ameno ao dizer isso, mas há ainda o componente do preconceito, do desprezo, do elitismo intelectual nos cargos de poder das Letras, que é desconsiderar as produções literárias étnico-raciais, LGBTQIAP+ e dissidentes ou ainda tomadas como apenas “exóticas”. Tal expressões linguísticas, então, são relegadas ao conhecimento de dialetos. Corpos como nossos ainda ocupam poucos postos de poder nas universidades para pleitear lugares dessas disputas.
Há um universo de escritos literários importantes que precisam chegar às mãos e olhos da população para que situações de agressões as que eu vivi no evento possam ser amenizadas. A circulação de literatura como a de “Neca” é importantíssima para esse movimento empático de penetrar no universo do outre por meio da sua expressão linguística. Vou ainda mais longe: seremos obrigados a criar mais uma modalidade de habilitação do curso de Letras, o Letras-Português/Pajubá, para conseguir dar um status ainda maior a essa expressão. Não seria má ideia encontrar uma ementa disciplinar em que se possa ler Joyce, Rosa e Moira em uma tríade importante da construção linguística.
Ler “Neca + 20 poemetos travessos” de Amara Moira é o desafio que qualquer um deveria realizar como forma de se humanizar pela língua em um mundo tomado pelo lodo fascista.
[1] https://www.blogs.unicamp.br/linguistica/2018/11/12/deu-bafao-a-polemica-sobre-a-questao-do-enem-em-relacao-ao-dialeto-secreto-de-gays-e-travestis/
[2] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/07/museu-da-lingua-portuguesa-usa-todes-em-post-na-internet-e-provoca-polemica.shtml
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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor, professor, pesquisador. É doutorando em teoria literária no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP.