*Por Lorraine Ramos*

“Às mulheres que, diante do espelho, tatearam a moldura, acariciando os arranhões das próprias mãos”

Lançado em 2023, “O diagnóstico do espelho” (Editora Mondru/140 p) da pesquisadora Sarah Munck Vieira, é uma obra que trabalha com o dualismo, em particular com a identidade do sujeito. Nesses versos inicias, Vieira expõe ao leitor o que percorrerá nas próximas páginas: a memória. Nesse caso, estamos falando de um sujeito, um corpo neurodivergente e suas lembranças.

Dividido em quatro partes (Seio, Ninho, Emboscada, Soltura), os títulos dizem por si só: estamos adentrando nas polaridades de vida e morte, ou melhor dizendo, a liberdade do eu lírico que se vê (e antevê) sobre a transitoriedade, uma linha limítrofe das ações dos outros e as suas. Mães, garotas, avós e irmãs tecem a narrativa dos textos. A menina séria é uma personagem que se encontra nas frestas das partes do livro que uma hora está na casa, na escola, e noutra a reflexão sobre o ato da escrita, como se fosse o ato de nomear uma libertação de uma identidade que nega. Que os outros a deram. “Era para ser inteira/te fizeram destroços”.

As imagens visuais caracterizam essa sinestesia, jogo com as sensações de mudanças subjetivas de quem está narrando essa relação com seu reflexo, para não dizer inconsciente. O passado e presente é simbólico aqui. Se alguém se olha no espelho, é incitado a pensar sobre si, seu diagnóstico, seu self. Quem é a menina séria que se recusa a morrer?

Ler a poesia de Sarah é como se estivesse tentando tirar o véu que encobre essa fragmentação poética, que vai além de um espelho e um diagnóstico de autismo; é uma transformação exterior e psicológica, lembrando Cecília Meirelles no poema “Retrato”: “em que espelho ficou perdida a minha face?”. Por coincidência ou não, o lirismo de Sarah dialoga com Retrato especificamente na estrofe “mas liberta/ainda que custe a outra face/a que nos corrompeu” no poema “difícil é sermos nós mesmas”.

Difícil talvez seja resistir ao olhar do outro.

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Lorraine Ramos Assis é crítica literária e escritora, autora de O duplo refletido (Folhas de Relva Edições)

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