Por Ana Lima Cecilio *

Diz a lista da Nielsen – que parece ser a mais completa sobre o mercado editorial – que em 2014 foram publicados 60.829 títulos no Brasil. É um número tão assustador quanto a quantidade de carros que são licenciados pelo Detran na cidade de São Paulo. É claro que esse número abarca todo tipo de livros, e tem reimpressões e publicações caseiras e obras específicas. É claro que somos 200 milhões e que tem gosto pra tudo, e as tiragens brasileiras são muito, muito pequenas – uma tiragem média, corajosa, é de 3 mil exemplares. Mas vejam só: são mais de 60 MIL títulos.

Tudo isso para dizer que é impossível ter sequer uma vaga ideia do que é publicado por aqui. Tem literatura contemporânea, poesia, ensaio, didáticos, acadêmicos, caça-níqueis, engraçadinhos, negócios, ensaios, biografias, cartas, memórias, receitas, livros com fotos, de arte, infantis, literatura clássica, enfim, a coisa é infinita. Distribuir é difícil e a relação com as livrarias dá um texto à parte – o que expor, como expor, quanto expor. Mas ainda acho que o maior nó no mundo editorial é a falta de lugar para falar deles. Temos apenas três grandes jornais, com espaços para a cultura cada vez mais magros, suplementos agonizantes, e o espaço para os livros respirando com dificuldade, com resenhistas com o fôlego ainda mais curto, que, pela falta de tempo costumam dar uma versão esticada do release, às vezes nem isso. E que mais? UMA única revista, a Cult, que sobrevive bravamente. Alguns outros suplementos veneráveis – Rascunho, Cândido, Suplemento de Pernambuco, Revista Continente – e lugares virtuais como essa SPRVIEW, que, sinceramente, talvez sejam o futuro mesmo. Mas para a gente, que trabalha com livro, dá uma tristeza lançar um livro que a gente acha importante (e lindo e emocionante e revelador e incrível) e vê-lo cair no limbo dos livros esquecidos.

No livro O último leitor, de David Toscana (Casa da Palavra) – um livro lindo, leiam, leiam! – tem um poço embaixo da biblioteca onde o autoritário bibliotecário joga todos os livros que não julga digno de irem para o “céu”, as prateleiras da biblioteca. O livro de Toscana é muito mais que isso, mas essa imagem de Lucio, o bibliotecário, decidindo o futuro dos livros é bonita e terrível. Primeiro porque os livros “indignos” são jogados nesse poço úmido cheio de baratas, para que sejam apodrecidos e comidos por elas. Lucio acha que queimá-los seria transformá-los em luz, em energia – o que seria dar muita moral para a sua boçalidade. E é essa mesma agonia que eu sinto quando vejo que um grande livro passou batido por todo mundo – porque o autor não veio à Flip (muitas vezes, mesmo vindo), por uma entrevista não dada, porque foi lançado num mês não propício (qual é?), por uma assessoria de imprensa fraca, pela falta de paixão dos jornalistas, por falta de espaço, por uma necessidade da própria editora de focar nos lançamentos comerciais e deixar os “literários” andarem sozinhos. Tudo isso são Lucios olhando os livros com uma preguiça desleixada e jogando-os no poço úmido da biblioteca, dizendo “esse aí não vai pegar, que as baratas deem conta dele”.

O limbo é democrático, e acolhe iniciantes desconhecidos, literatura comercial, clássicos contemporâneos, clássicos mais que consagrados. Sofro um pouco quando um amigo querido, e são vários, lança um livro e confessa aquele frio na barriga de “agora vai”. Puxa, não vai. Do mesmo jeito, eu, como editora, sinto o mesmo frio quando reedito lindamente, com nova tradução, capa linda, aparatos, um clássico esquecido, há muito longe das livrarias e dos leitores. O “agora vai” às vezes vira uma notinha, às vezes uma resenhinha maior, às vezes a gente vai identificando, com certa melancolia, as palavras que nós próprios usamos na orelha, no release. E uma tristeza atroz de ninguém ter olhado aquele filho com cuidado, de ninguém ter ligado pra ele, ninguém ter pensado nele.

Nesse limbo estão livros queridíssimos, lindíssimos que às vezes conseguem ter uma vida um pouquinho mais longeva por essa maravilha na vida dos leitores que é o boca-a-boca. Um amigo, que me apresentou vários tesouros, toda vez que se apaixonava por um livro comprava logo vários, e saía distribuindo, numa assessoria de imprensa toda própria de anjo da guarda que ele era. Foi pensando nisso que comprei mais de uma vez os livros do Vicente Cecim, do Bernardo Élis, do Giovanni Verga, do Rubens Rodrigues Torres Filho, do Karl Kraus, do Elio Vitorini, do Antonio Carlos Vianna, do André Laurentino, aquele lindo do Jakobson, da incrível Aglaya Veteranyi, até do Joseph Roth e do Nobel (nem eles são impunes) Knut Hamsum. Vejam bem, é óbvio que esses livros existem, e têm fãs inveterados. Conhecê-los não é coisa de alfarrábio especialista em raridades. Mas é preciso falar deles, é preciso lembrar que eles existem. É preciso mandar o Lucio ser menos autoritário e dar uma chance. Ou, por outra: não pode ser um único Lucio quem decide o que vai aparecer ou não, eu não quero ser refém das listas dos mais vendidos. É preciso criar espaços na imprensa que consigam burlar a cláusula incontestável da data – num universo de 60 mil livros, um livro com três meses é “velho”, não é mais novidade. Frases absolutamente corriqueiras pra quem trabalha com livros – ou, colegas, me digam que estou errada: “Já saiu uma nota na Folha? Ih, então o Estadão vai cair.” “Se saiu um trecho inédito na Ilustríssima, depois não sai direito em lugar nenhum.” “Não saiu em lugar nenhum em dois meses? O livro já era, mesmo que ninguém tenha dado uma mísera linhazinha sobre ele.”

Falta entre a gente lugares de boa vontade. Lugares que falem dos livros pelas conversas que eles possam suscitar. Pela inteligência, pela importância, pela curiosidade. Os livros vão e voltam, e é uma maravilha quando a gente lembra uma cena que explica tão absurdamente os absurdos que vivemos – esses dias tem circulado no Facebook o poema “Lira itabirana”, do Drummond, com uma pertinência tão surreal que dá medo de que seja mais um même bossa-claricelispector– o poema fala sobre a presença amarga da Vale no Rio Doce.

Na coluna que teve durante uns três anos na Folha de S. Paulo, Cassiano Elek Machado mantinha uma seção chamada “Fora da Estante”, em que ele falava de livros ou que nunca tivessem sido traduzidos no Brasil ou que estavam esgotados há muito tempo. Era uma maravilha e eu descobri muita coisa surpreendente lá. Evandro Affonso Ferreira, esse escritor-leitor mestre, erudito generoso, essa avis rara, fazia isso diariamente nos sebos que teve em Pinheiros – primeiro o Sagarana, depois o Avalovara. Uma vez, ele comprou uma tiragem quase inteira de A ordem natural das coisas, do Lobo Antunes, que ele achou meio esquecida no canto de uma distribuidora do Bexiga. Ele ia vendendo/ dando/ empurrando pros leitores que iam tomar café com ele. Também foi ele que me apresentou o Giorgio Manganelli, o Italo Svevo, o Bruno Schultz (pré-Cosac) e tantos outros. Sorte minha.

Mais do que uma reclamação, eu queria que esse texto fosse uma evocação dos anti-Lucios. Queria que houvesse um lugarzinho utópico nessa nossa imprensa tão apressada que comportasse esses resgates. É claro que eu, que a gente tem terceiras intenções – os livros bonitos dos amigos, os livros que a gente mesmo editou, tornar a literatura menos estanque, menos escondida, menos maçônica. Que o debate sobre literatura fosse além dos superlançamentos, dos incensados, da lista de mais vendidos, do autor midiático. Na verdade, eu queria que as pessoas olhassem praquela estante da livraria feita de lombadas – um livro com a capa exposta nas rodas centrais das livrarias é como um jovem iludido vivendo os quinze minutos de fama. Mas vejam lá, reparem bem. Numa prateleira ventilada, com os livros prontos pra serem puxados.

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Ana Lima Cecilio é editora do selo Biblioteca Azul, da Globo Livros, para o qual editou Balzac, Proust, Beckett, Adolfo Bioy Casares, Hilda Hilst, Monteiro Lobato, entre outros.  É parte do conselho editorial da São Paulo Review

 

 

 

 

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