* Por Nilma Lacerda *

A Rodoviária Novo Rio situa-se na boca do Rio antigo, à entrada das vias para o Centro da cidade, para a Zona Norte e a Zona Sul. A localização oficial coloca-a no bairro de Santo Cristo, que tem como um dos limites o Morro da Providência. A ocupação desse morro dá-se no final do século XIX, pelos expulsos de um cortiço e pelos soldados da Guerra de Canudos, que ao retornar à cidade não viram cumpridas as promessas de terem direito a casas, em caso de vitória. A associação à planta conhecida como favela, endêmica no Brasil, e muito presente na região de Canudos, passa a designar o local: morro da Favela. Nascia um conceito.

Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2004.

Depois de contar sua história, o homem (José, naturalmente) me mostrou a carteira oficial de passe livre que possuía. No lugar para a assinatura, a informação impressa por meio do computador: não assina – deficiência. Olhei de novo para as mãos dele: perfeitas. Os olhos estavam bem vermelhos – viagem e noites mal-dormidas. Ele não era cego: identificava os documentos que ia me dando, para dizer-se a mim.

Que sociedade é esta que escreve deficiência para o que é simplesmente a falta de uma competência? Uma competência pela qual ela é responsável frente a todos os cidadãos?

Conheci José (Macedo da Silva?), na Rodoviária Novo Rio, Rio de Janeiro, entre a primeira e a segunda hora de 15 de dezembro de 2004. 15 de dezembro. 2004.

“Apagaram tudo

Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro ficou coberta de tinta

Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro tristeza e tinta fresca

Nós que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras e as palavras de Gentileza”

Rio de Janeiro, 8 de outubro de 2005.

Os versos são da cantora Marisa Monte para a música “Gentileza”, gravada em 2000, lastimando a cobertura grosseira dos escritos nas pilastras do viaduto da avenida Perimetral, próximo à Rodoviária Novo Rio, na região portuária do Rio. Os borrões de tinta cinza foram obra da Companhia de Limpeza Urbana, na maneira clássica de apagar o indesejável de muros públicos. Não são indesejáveis as escritas de rua, não eram indesejáveis as sentenças do profeta Gentileza, personagem emblemático da cultura carioca nos últimos vinte anos do século XX. Sujas, manchadas por pichações, desgastadas pelo tempo, encontraram no apagamento o destino dos textos considerados supérfluos pelo poder. E eram essenciais à vida na cidade, à cortesia na cidade. O protesto da cantora, circulando em shows por todo o Brasil, leva à restauração empreendida no mesmo ano de 2000, com apoio da prefeitura da cidade à ação de quatro artistas plásticos, realizando a restauração, a partir da pilastra número um, no km zero da Avenida Brasil.

Cheguei a ver Gentileza, pela avenida Brasil, carregando o estandarte, os cabelos longos e grisalhos, a barba de um branco amarelado, o longo hábito branco com apliques de estrela, flor, santos, textos. A escrita nos pilares da Perimetral será ainda significante para os passantes do presente? Causou impacto essa escrita, ao sair, nos anos de 1980, dos estandartes e placas que produzia para ser incorporada à cidade, novas tábuas da lei para as relações humanas. As letras em verde sobre fundo branco, a simetria bem cuidada, a separação entre as linhas por filetes de cor amarela ou verde, os separadores de palavras guiando a leitura, como nos textos medievais. Uma etimologia particular, fil.hos, a repetição enfática de algumas letras: Amorrr, jessuss, univvverrsso, e o apelo profético a uma ordem de regeneração, de reflexão e crítica sobre o mundo contemporâneo. Nessa ordem, gentileza é a palavra inaugural, oposição ao consumismo capitalista.

Que conceitos mobilizavam-se em mim, ao vê-lo? O fascínio, a compreensão de outra lógica, mas nenhuma lasca de compaixão. Hoje, eu pensaria no Louco, a figura do tarô, o doador, o fiel a si mesmo, à verdade pessoal que não pode ser dita. Mas José Datrino, a pessoa por trás do epíteto, pôde dizê-la, entregá-la ao mundo como ato da cultura escrita. Escrever e ler na cidade é ser, de forma plena, um sujeito dessa cultura, em relação permanente com todos os semelhantes, de todos os tempos e de todos os espaços.

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

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