* Por Rodrigo Naves *

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“O que está errado com a pintura moderna é que ela pinta para o seu tempo. Os artistas pintam para este século. As pessoas veem de forma rápida e então eles pintam de modo a que suas telas possam ser vistas rapidamente.” [1]

I

A mais relevante notícia no meio das artes visuais de 2020 é lamentável, para além das dificuldades que a pandemia trouxe para artistas, museus, galerias etc. A retrospectiva “Philip Guston Now”, organizada pela National Gallery of Art (Washington), Tate Modern (Londres) e pelos Museums of Fine Arts de Houston e Boston foi adiada para 2024, depois que a abertura oficial, em 2020, foi cancelada em razão do coronavirus. Oficialmente o motivo alegado para o adiamento foi “pensamos que a poderosa mensagem de justiça social e racial, central na obra de Philip Guston, possa ser mais claramente interpretada”.

É de se perguntar: interpretada por quem? A mostra não foi adiada, possivelmente por tempo indeterminado? Afinal quem poderia ver num mesmo espaço 125 pinturas e 70 desenhos do artista, nascido no Canadá em 1913, filho de uma família judaica – seu sobrenome original é Goldstein – que emigra para Montreal, na tentativa de escapar do antissemitismo. Quem já leu Isaac Babel, também um judeu ucraniano e apreciado por Guston, terá dificuldade para esquecer os terríveis pogroms (“massacre”, em russo) desencadeados por motivos fúteis, mas com consequências macabras para a população judaica.

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Em 1935 Guston deixa Los Angeles e vai para Nova York. Havia conhecido Jacson Pollock antes e poderia ter aí um meio artístico que o ajudasse a impulsionar sua pintura. Aproxima-se dos expressionistas abstratos e também de Harold Rosenberg, um dos grandes críticos ligados ao grupo. Sua produção nesse período não é propriamente gestual, como a pintura de De Kooning e Pollock. O uso de camadas espessas de tinta (“impasto”) e o modo de pincelar emperram um movimento mais ágil do pincel, coisa que não acontece com Willem de Kooning. É sem dúvida uma pintura de ótimo nível, mas não foi esse momento da arte de Guston que levou à suspensão da mostra.

Infelizmente não se costuma identificar aspectos críticos e políticos na arte abstrata. A partir de 1967, Guston passa a criticar o abstracionismo. Como toda objeção genérica, a sua também é limitada. Já a defesa do figurativismo tem uma dimensão bem mais convincente. “Gosto de coisas com raízes no mundo tangível. Gosto de coisas antiquadas, como a gravidade, o modo de caminharmos. Gosto de me deitar num banco de praça e apreciar o maneira de as pessoas andarem.”[2]

II

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Guston sempre foi um artista empenhado politicamente. Apoiou os movimentos antirracistas tanto por meio de pinturas murais quanto pela doação de obras para o pagamento de advogados. Foi porém a Ku-Klux-Kan o tema que concentrou a oposição do pintor a todas as formas de violência e discriminação. Inspirado em parte nos desenhos de Robert Crumb, um dos mais originais quadrinistas de todos os tempos, Guston quer tornar o mal visível. Vem daí a fatura relapsa, o uso recorrente das superfícies magenta e dos contornos titubeantes. Não há esplendor na crueldade.

Estou convencido de que os montes de objetos banais (sapatos, bolsas, bolas etc.) representados pelo pintor remetem aos objetos que judeus, homossexuais, comunistas, ciganos e ladrões eram obrigados a abandonar antes de terem a cabeça raspada e serem jogados nos campos de concentração nazistas. E o próprio Guston não está imune à violência contemporânea. Diante de um cavalete um encapuçado da KKK pinta seu autorretrato. Parece indiscutível que a grande presença das figuras da KKK foi decisiva para o adiamento da mostra de Guston. E como a KKK tornou-se um símbolo das perseguições, linchamentos e enforcamentos de afro-americanos, “pensamos que a poderosa mensagem de justiça social e racial, central na obra de Philip Guston, possa ser mais claramente interpretada” possa ser interpretada por essa via.

III

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É de supor que foi a vertente de pensamento crítico chamada politicamente correto que determinou a suspensão da retrospectiva de Philip Guston. Só que há aqui um detalhe fundamental: não houve (nem poderia haver, pois a exposição não foi aberta ao público) um protesto do movimento Black lives matter – um movimento que organiza a partir de 2013, para protestar contra o assassinato do cidadão negro Trayvion Martin – contra a obra de Guston. Apenas umas dezenas de curadores, burocratas e, muito possivelmente, patrocinadores que tomou autocraticamente essa decisão. Foi um posicionamento que apenas levou em conta qual poderia ser a resposta do público.

Imaginem se Monet, Cézanne, Hélio Oiticica, Mondrian, Bram van Velde, Mira Schendel, Cássio Michalany, Santídio Pereira etc. tivessem adotado atitude semelhante, ou seja, fazer arte para agradar uma audiência. A confirmação de expectativas pode ser útil em pesquisas de opinião pública. Pedir isso à arte é censura.*

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* Agradeço a ajuda de Tiago Mesquita para a realização deste artigo.

[1] Entrevista de Philip Guston concedida ao crítico Mark Stevens em 1980, ano da morte do pintor. Tanto a data da conversa quanto seu contexto levam a crer que Guston se refere à pintura contemporânea quando fala em “modernismo”. Todavia, Guston elogia a arte de Andy Warhol.

[2] Trechos da entrevista já citada.

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Rodrigo Naves é crítico, historiador da arte e professor. Publicou El Greco (Brasiliense, 1985), Amilcar de Castro (Tangente, 1991), Nelson Felix (Cosac Naify, 1998), Goeldi (Cosac Naify, 1999), A forma difícil (2011) e A calma dos dias (2014), ambos pela Companhia das Letras, entre outros.

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Fotos do artista, imagens de divulgação de suas obras, imagem do catálogo da mostra

 

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