Reformas e urbanismo

* Por Rodrigo Naves *

Os anos em que estudei na USP, entre 1973 e 1977, coincidiram com a época de maior força do movimento estudantil, na luta por liberdades democráticas e contra a ditadura militar. Nele, quase todas as organizações de esquerda tinham alguma presença, embora, até onde saiba, o que restava dos grupos armados praticamente já não atuava na USP. Ao menos, acredito, não mais recrutavam quadros naquele meio universitário[1].

O Partido Comunista Brasileiro, os maoístas do PC do B, a Ação Popular, o MR-8, trotskistas de três ou mais orientações e outras pequenas organizações de origem histórica menos definida lutavam por  liberdade de expressão e organização, eleições livres e diretas, além de todos os direitos de um estado democrático. Era, porém, a boa e velha revolução que estava no horizonte de todos nós, ainda  que a necessidade (ou não) de etapas de transição consumisse boa parte de nossas energias e afastasse uns dos outros os muitos agrupamentos, como se a aurora dos novos tempos fosse romper ao final da noite.

Vistos assim do alto, foram tempos quase cômicos. Agíamos como se toda uma longa tradição revolucionária desembocasse em nós. E eram frequentes análises de conjuntura que recuavam ao conturbado ano de 1905, quando a revolução russa adquire seus contornos mais nítidos.

Naqueles dias, tudo era bem mais complicado e bem menos divertido. Havia tortura, assassinatos, prisões, apanhávamos da polícia nas manifestações de rua e julgávamos uns aos outros com um rigor muito discutível. Apesar de tudo, nossos sonhos e ilusões ajudaram a restabelecer a democracia no país.

Nessa situação de grande radicalização, ao menos dos projetos, discursos e avaliações, não sobrava muito espaço para a discussão do que poderíamos transformar em nossas áreas profissionais propriamente ditas. Estou convencido, porém, que foi entre nós, militantes estudantis, que se realizaram algumas experiências mais interessantes ao menos no âmbito do jornalismo[2], sem falar das intensas, ricas e pouco realistas discussões em todas as áreas de ciências humanas.

Na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), a Libelu (como era chamada a tendência estudantil Liberdade e Luta) também tinha forte presença. Acontece que cidades e edificações não são folhas de papel impresso que se prestem tão facilmente a experimentações. E, ao menos pelo que me lembro, o tudo-ou-nada de nosso radicalismo se encaminhou, na FAU, para uma posição imobilista. Tudo que não implicasse uma transformação radical da existência era considerado um reformismo conservador, uma maneira de abrandar o capitalismo sem superá-lo.

Nessa toada não é de estranhar que quase todo o peso das discussões mais interessantes se voltasse, quando muito, para pretensões urbanísticas abrangentes, em que as interrogações sociológicas sobressaíam em relação aos projetos arquitetônicos, olhados então quase com desdém. No período, formaram-se alguns arquitetos e urbanistas que têm hoje atuação relevante. Não foram muitos, porém. Cristiane Muniz, Fábio Valentim, Fernanda Barbara e Fernando Viégas – os quatro profissionais que se uniram para criar, em 1996, o UNA Arquitetos[3] – fazem parte de uma geração que se esforça para voltar a realizar arquitetura de qualidade, reatando, de forma mais ou menos crítica, com a notável produção da arquitetura moderna do país, duramente castigada pela ditadura militar. Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha – dois dos mais significativos arquitetos modernos brasileiros – tornaram-se referência importante para o UNA.

Seu período de formação na FAU-USP (1989-94) coincide com a redemocratização do país, na qual todos se envolveram com maior ou menor empenho. À liberdade de discussão e realização trazida pela democracia se somou uma série de outras questões.  Todas as carências históricas do Brasil – desigualdade social, precariedade do saneamento básico, da infraestrutura, da educação, a desconcertante violência urbana (costuma-se, hoje, a falar em 50 mil assassinatos por ano no país), os problemas crônicos de mobilidade urbana e transporte público – vieram à tona com uma força proporcional à repressão que havia impedido essas discussões.  Foi em meio a essa situação rica e repleta de ambiguidades que o escritório se desenvolveu e se firmou.

Conheço os quatro fundadores do escritório bem antes de eles o terem constituído. Sou amigo de todos eles e conheço de perto suas angústias e dificuldades para reatar com uma tradição que se havia perdido entre nós: uma arquitetura de qualidade (escusado dizer que para eles isso é impossível sem ter em consideração a cidade em que vivemos junto com a cidade a que almejamos) que estivesse à altura de uma democracia com aspirações igualitárias.

Se essa proximidade coloca algumas dificuldades mesmo para uma apresentação menos analítica, por outro lado, também leva a certas vantagens que apenas a convivência – com as discussões e, sobretudo com seus espaços[4] – possibilita. Justamente por não ser um conhecedor do assunto, me deterei nas duas reformas mencionadas. Acredito, porém, que, mesmo sendo reformas, ambas sintetizam muito significativamente o pensamento do escritório.

Desde o final da graduação, o interesse dos quatro arquitetos pelas relações entre a cidade, equipamentos urbanos e os diferentes tipos de edificação pública e privada se desdobrou em estudos detalhados sobre a cidade e suas possibilidades. Projetos urbanos para orla ferroviária Santos-Jundiaí e alternativas para uma possível desmontagem do Minhocão foram pensadas a fundo. Por outro lado, tentaram tirar proveito das experiências passadas que articulavam com grandeza espaços públicos a atividades privadas, como o Copan e o Conjunto Nacional.

No final de 1999, início da notável gestão de Lorenzo Mammì à frente do Centro Universitário Maria Antônia (Ceuma), teve início movimentações para se realizar uma reforma nos antigos prédios da USP na rua Maria Antônia. Foi nessa rua que começou a funcionar a Faculdade de Filosofia da USP, um dos primeiros núcleos da universidade e também um dos locais em que os enfrentamentos entre estudantes favoráveis e contrários ao regime militar – esquematicamente divididos entre a Universidade Presbiteriana Mackenzie e a Faculdade de Filosofia da USP – adquiriram maior visibilidade pública.

Dois prédios compunham o Ceuma – o Rui Barbosa e o Joaquim Nabuco, este, em péssimo estado de conservação, estava interditado, pois havia risco de desmoronamento parcial da construção. O espaço existente entre ambos (praticamente um terreno baldio no interior da quadra) foi ocultado por um longo muro de mais de 3 metros de altura, no qual a certa altura abriu-se uma passagem improvisada que servia de acesso opcional ao Teatro da Universidade de São Paulo (Tusp). Como a programação do que deveria ser um centro cultural da universidade era tão precária quanto a situação física dos edifícios, muitos moradores, mesmo das redondezas, mal sabiam o que eram e a importância cultural e política que tiveram.

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Era essa a situação encontrada pelo UNA quando se fez o convite para que estudasse – sem nenhuma remuneração ou compromisso – uma possível reforma do local. Um espaço arquitetônico histórico oferece de imediato uma alternativa historicista fácil e, possivelmente, limitada[5]. Bastaria restaurar com competência e fidelidade a construção, atualizando tecnicamente suas instalações, e já teríamos – com a recuperação de seu uso – a garantia da preservação de um aspecto da memória coletiva. Num país avesso à conservação do que quer que seja não seria pouco. O partido adotado pelos arquitetos conduziu a uma direção diversa, que procuraria restituir àquele espaço uma significação real (e não apenas simbólica) que reforçasse as aspirações do movimento que havia sido violentamente interrompido pelo golpe militar de 1964.

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Espacialmente, a ideia foi abrir o espaço a um uso público, o que literalmente poderia ser obtido com a simples demolição do muro que separava o Ceuma da cidade. A ausência de barreiras, por si só, não contribui, porém, para o estabelecimento de formas civilizadas de convivência. Além disso, era preciso lidar com o espaço interno que se abriria com a retirada do muro e que ficava a uns 4 metros abaixo do nível da rua Maria Antônia. A solução encontrada fez com que se abrissem duas praças – uma em cada nível do terreno –, conectadas entre si por uma passarela e duas rampas.

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A laje que constitui a primeira praça foi concretada a mais ou menos 1 metro acima do nível da rua (sob ela, irá funcionar o auditório do Ceuma), o que já ajudava a qualificar a transição entre os dois espaços, um público (a calçada), e uma espécie de vestíbulo, um local de passagem diferenciado, que antecipava a praça interna, no nível baixo do terreno, mais protegida e calma, já um pouco distante dos ruídos do tráfego e com as copas das árvores para amenizar o calor do local.

À direita da primeira praça tinha-se acesso a um hall que conduzia por lances de escada a dois dos melhores espaços expositivos da cidade. Sua construção foi impulsionada basicamente pelos esforços da galerista Raquel Arnaud, que de 2007 a 2010, conseguiu manter funcionando no local (sem a menor ajuda da USP) o Instituto de Arte Contemporânea (IAC), que nesse tempo realizou ali várias importantes exposições, além de organizar os arquivos dos artistas que, teoricamente, constituiriam o núcleo inicial do IAC: Sérgio Camargo, Amílcar de Castro, Mira Schendel e Willys de Castro.

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Em suma, em meio a uma rua comum, embora envolta pela aura de um passado de relativa importância, conseguiu-se a muito custo, com bastante trabalho voluntário e, acima de tudo, com um projeto notável criar um espaço duplamente público. Espacialmente, ao colocar em contato, de forma mediada – ou seja, que supõe uma experiência da passagem entre cá e lá, a percepção forte que se transita de forma laica entre lugares que têm um sentido diverso – a rua e um ambiente construído. E culturalmente, já que aquela experiência anterior parece solicitar o contato com objetos que sejam eles mesmos o resultado da qualificação de relações de cor, forma, volume etc. Uma das características das artes visuais.

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Situação original

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Demolições

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Projeto final

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Novas construções

O escritório que ocupo desde 2004, no número 184 da Rua Dr. Vila Nova, sem dúvida tem um uso que impossibilita pensá-lo na mesma linha da reforma anterior. Trata-se de uma pequena casa – seu terreno tem aproximadamente 82 m2 – construída nos começos do século XX, e que os usos mais díspares (restaurante popular, quitanda, bar, papelaria, entre tantos outros) levaram a soluções contrastantes e diferentes que, certamente por falta de dinheiro dos locatários, foram se somando e sobrepondo. Quando adquiri a casa, encontramos um labirinto de cômodos sem muita lógica, que foi preciso pôr abaixo. Foram mantidas apenas a fachada, as paredes laterais e o muro dos fundos, que a separa de uma loja da Rua Maria Antônia.

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O terreno do imóvel oferecia uma dificuldade a mais. Além de suas dimensões módicas, ele configurava um trapézio, e não um retângulo regular. Isso para não falar do pouco dinheiro disponível para as obras que, para completar o quadro, precisavam ser realizadas em pouco mais de dois meses, sem o que não poderia começar o ano letivo de 2014 no novo espaço, o que para mim seria um desastre.

O fato é que – contrariando a lenda que diz que arquitetos só atrapalham uma obra – todas essas dificuldades não teriam sido superadas sem as soluções propostas pelo escritório. Seria cansativo para o leitor o detalhamento dos achados que deram a esses, digamos, 120 m2 de área construída uma espacialidade, uma circulação e uma funcionalidade exemplares. Gostaria de chamar a atenção apenas para dois aspectos: a ideia de um mezanino, que tornou possível separar a sala de aula do meu escritório propriamente dito; e os passadiços que permitem que se caminhe por todo o perímetro do mezanino e possa alcançar os livros que ocupam toda a metade superior das paredes laterais.

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Para além da praticidade da solução, convém atentar para a justeza da proporção entre as paredes da sala e os passadiços, que, se avançassem demais sobre a sala de aula, poderiam perturbar os alunos e prejudicar a leveza proporcionada pelo pé-direito alto, também ele uma decisão dos arquitetos que contribuiu para amenizar a temperatura do local. Ao fim, mesmo sendo um ambiente privado, o escritório guarda, pela circulação proporcionada pelo projeto, alguma relação com espaços públicos. E sempre me vem à mente o Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, quando o vejo de fora, com as luzes acesas.

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 Reformas muitas vezes são apenas um empecilho para a plena realização de um projeto, palavra que etimologicamente significa “lançar para a frente”. De fato, o termo “projeto” está ligado tanto à antecipação de algo (“fiz um projeto para as férias”), quanto à suspensão provisória da realidade de algo. Quem diz “fiz o projeto de um barco”, está dizendo que tentou antecipar, num estudo, o barco a que almeja. Essa antecipação é também, e esse aspecto é decisivo, a suspensão momentânea de uma objetividade que, por ora, tem uma porosidade que perderá assim que tornar-se um objeto, uma coisa. Partir de uma construção preexistente supõe aceitar muitas vezes um pressuposto que emperra os movimentos, a liberdade de quem começa do zero.

Nos dois casos mencionados aqui, a má qualidade da arquitetura encontrada sem dúvida dificultou as soluções propostas pelo UNA. No entanto, como tudo nesta vida tem limitações reais e intransponíveis, acredito que as reformas também têm uma dimensão pedagógica poderosa. Elas ensinam a reconhecer e a respeitar a cidade em que vivemos, o clima que nos coube, a história que, gostemos ou não, nos trouxe a esse ponto, do qual teremos que partir. Mesmo com a inércia desse passado a dificultar seus movimentos, o escritório conseguiu instilar leveza no peso dessas estruturas toscas. Giulio Carlo Argan, um dos maiores estudiosos da arquitetura, publicou, em 1965, uma coletânea de ensaios chamada “Progetto e destino”. No mínimo, é a tensão entre esses dois polos que uma reforma nos ensina a considerar, ainda que para desobedecê-la.[6]

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[1] Por motivos que, acredito, ficarão claros no decorrer desta introdução, não pude evitar essa menção à minha discreta participação no movimento estudantil do período.

[2] Na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), que oferecia um dos piores cursos de jornalismo de que já tive notícia, estudantes sobretudo ligados à tendência trotskista Liberdade e Luta   — braço estudantil da Organização Socialista Internacionalista – e outros estudantes “não-organizados”, como dizíamos então, conseguiram lançar três números de um jornal chamado “Avesso”, que realizou experiências notáveis tanto na linguagem dos artigos quanto no desenho gráfico da publicação. Houve outros periódicos feitos na época, como o jornal “Dois Pontos”, de caráter menos experimental.

[3] A partir de 2019 o Una Arquitetos passou a contar com duas novas sociedades: UNA Barbara e Valentim e UNA MunizViégas.

[4] Desde 2004, trabalho num espaço de pouco mais de 80 m2 reformado pelo UNA, a partir da única residência que restou no lado par da Rua Dr. Vila Nova, em Vila Buarque. A casa original é do início do século passado.

Acompanhei também, desde o início da gestão de Lorenzo Mammì na direção do Centro Universitário Maria Antônia (Ceuma), de setembro de 1999 a 2005, as discussões para a formulação do projeto de reforma dos antigos prédios da USP. Desde então frequento regularmente seus espaços.

[5] Retomo aqui, muitas vezes literalmente, o artigo de Ana Vaz Milheiro publicado na Revista Novos Estudos n. 63 julho/2002 págs 179 a 183

[6] Agradeço a Dulce Castellar o apoio e o profissionalismo de sempre, que tornaram mais viável a realização desta apresentação.

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Rodrigo Naves é crítico, historiador da arte e professor. Publicou El Greco (Brasiliense, 1985), Amilcar de Castro (Tangente, 1991), Nelson Felix (Cosac Naify, 1998), Goeldi (Cosac Naify, 1999), A forma difícil (2011) e A calma dos dias (2014), ambos pela Companhia das Letras, entre outros.

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As fotos 2, 3 e 4, conforme aparecem no texto são de autoria de Nelson Kon; as 9 fotos seguintes são de Bebete Viégas.  

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