Romances publicados em plena ditadura militar: a loucura, a fragmentação e a ironia

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Por Márcio Almeida *

Na análise competente, fecunda e erudita que Eloésio Paulo faz em Loucura e ideologia em dois romances dos anos 70 (Scortecci Editora, 2014) ou seja, publicados em plena ditadura, – Confissões de Ralfo, de Sérgio Sant`Anna, e Quatro-olhos, de Renato Pompeu, ambos então estreantes na narrativa, representam diferentes soluções para o impasse da ficção brasileira sobre o período alcunhado de suposta revolução militar, a partir de 1964 até o final da década de 80.

Resultado de estágio pós-doutoral do autor de Areado no Programa de Pós-Graduação em Literatura da Faculdade de Letras da UFMG, sob a supervisão da professora Vera Lúcia Casa Nova, – o livro fundamenta-se com a desconstrução do conceito de ideologia. Para o ensaísta, além de não existirem critérios indiscutíveis, todo sistema crítico é, por definição ideológico, sujeito à dinâmica que pretende conjurar (cf. Adorno/Horkheimer). De concepção marxista e freudiana, a análise do ensaísta adota, como chamou Susan Sontag, o “estilo moderno de interpretação”, que antes de tudo opõe-se aos excessos na crítica de obras literárias. “Preferimos, diz Eloésio Paulo, uma “abordagem erótica”, como quer Sontag, em que o discurso sobre o objeto não pretenda substituí-lo, mas apenas municiar novas leituras que se queiram menos ingênuas”, evitando-se sobretudo o que Frederic Jameson definiu como “miragem” que ronda algumas críticas da ideologia fundadas nos escritos de Marx.

Fica claro, posto que bem fundamentado, que o conceito de ideologia que interessa deduzir da análise é a concernente à linguagem, à qual, segundo Denis Turner, é importante a “contradição performativa” e, conforme T. Eagleton, fazer a “descrição elucidativa de um tipo específico de ato ideológico.”

O ensaísta faz por esclarecer a acepção a fortiori impingida pelos militares quanto a chamar de revolução o golpe de 64: “Relembremos que os golpistas de 1964 se apressaram em chamar seu movimento de “revolução”, num claro encobrimento do real que se reproduziria na retórica do regime até a abertura – ´lenta, gradual e segura´ a qual não passou de uma capitulação forçada pela vertiginosa obsolescência do modelo político-econômico implantado a força. Revolução implica abertura utópica, ditadura quer dizer garantia extrema da repetição: substituir uma palavra pela outra só foi possível com o auxílio de camadas sobre camadas de ideologia.”

Nesse contexto contraditório e abusivo por parte dos golpistas, “primeiro turbulento e depois terrível”, na interpretação de Antonio Cândido, de “ilusões armadas”, segundo Elio Gaspari, a loucura literária resultou em “enfoques inesperados capazes de desmontar um discurso hegemônico”. É quando, compara o ensaísta, o escritor, na melhor das hipóteses, encena como Hamlet uma loucura que ele não é.

Para que o leitor possa melhor discernir sobre a produção romanesca brasileira do período ditatorial, Eloésio Paulo faz uma revisão nos principais estudos que dela emanaram: começa chamando a atenção para o Osman Lins de Guerra sem testemunhas e Avalovora, cujo cenário literário  evoca a uma também forçada entrada do Brasil no capitalismo pós-industrial, para em seguida recordar a análise de Antonio Cândido na qual são citados Rubem Fonseca e Roberto Drummond como críticos do regime, argumentando o crítico da USP que o golpe militar havia provocado uma nova “ideologização” da narrativa, que culminaria no que chamou de “literatura da repressão”.

O ensaísta inclui, como analista desse “gênero”, também o crítico Benedito Nunes, para quem o melhor da ficção dos anos 1970 fez uma “retomada da prosa modernista interrompida pelo engajamento político regionalista e a partir da década de 30, uma retomada cuja multiplicidade tinha seus denominadores comuns no recurso frequente à fragmentação do enredo e na alegorização da narrativa”, o que está presente nas opções formais de Confissões de Ralfo e Quatro-olhos.

Renato Tapajós é lembrado por causa do censurado Em câmara lenta em cujo prólogo lê-se que “ninguém pode escrever com um mínimo de honestidade sobre política em nosso país, nesse período, sem falar de tortura e de violência policial – tão marcante que foi a presença da repressão na formação desse Brasil em que vivemos hoje.”

Davi Arrigucci Jr. vem à baila por ter concentrado na ficção do boom editorial a tendência ao retorno à “literatura mimética”, detectável em romances como Cabeça de papel, de Paulo Francis, Reflexos do baile, de Antonio Callado, e Lúcio Flávio, de José Louzeiro, nos quais já havia também a intenção de se cumprir uma “função vicária” em relação às notícias censuradas pelo governo e tentativas “malogradas” de alegorizar o momento histórico – “nisso pagando seu tributo à reprovação lucasiana da tendência alegórica de representar o real por meio de abstrações.”

Tânia Pellegrini é citada pelas análises de Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, Zero, de Loyola Brandão, e O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira; enquanto Renato Franco por resumir o panorama da ficção pós-64, que inclui A festa, de Ivan Ângelo, Quarup, de Antonio Callado, Pessach, a travessia, de Carlos Heitor Cony,  Os novos, de Luiz Vilela, e a partir dos anos 70, Armadilha para Lamartine, de Carlos Sussekind, Quatro-olhos, de Renato Pompeu, estes últimos cognominados “romances de resistência.”

Outra amostragem apontada é a feita por Regina Dalcastagné, que dividiu, segundo Eloésio Paulo, os romances em três tendências, com critérios formais e temáticos em vez de cronológico: a primeira dos romances estruturados fragmentariamente, em diálogo com a linguagem jornalística, caso de Reflexos do baile e A festa, considerados superiores aos depoimentos ficcionalizados, obras vinculadas à tradição iniciada por Memórias póstumas de Brás Cubas, por incorporar a “mímese das articulações literárias utilizadas para a composição” como elemento essencial do processo de representação do real”. No segundo grupo alinham-se romances ambientados em cidades pequenas “onde o anonimato é impossível e a opressão se configura sem disfarces”, caso de Incidente em Antares, Os tambores silenciosos, de Josué Guimarães, e Sombras de reis barbudos, de J. J. Veiga.

No terceiro grupo estão os romances em que os protagonistas são mulheres: As meninas, de Lígia Fagundes Telles, A voz submersa, de Salim Miguel, e Tropical sol da liberdade, de Ana Maria Machado, nos quais, diz o ensaísta, “a sutileza da visão feminina é capaz de iluminar aspectos menos óbvios da violência ditatorial, sendo os enredos firmemente plantados no chão da História.”

Eloésio Paulo, contudo, destaca que o mais amplo desses estudos é o de Malcolm Silverman, por ter resenhado cerca de 200 livros publicados entre o golpe militar e o final dos anos 1980. E que, com o percurso analítico descrito procurou-se por em evidência “três denominadores comuns a grande parte do romance escrito sob a ditadura militar:a fragmentação, a alegoria e a referência constante aos problemas políticos-ideológicos.”

A literatura no hospício

A luta com os antagonismos da própria literatura no universo (in)coerente dos lados de fora e de dentro do hospício, que definem a força expressiva de seus protagonistas, se Ralfo, que não é oficialmente louco, mas que sofre de uma “peste dentro da alma” que vai justificar sua estigmatização e sua inadequação às definições consensuais de literatura, – reúne em si “o comportamento amoral, a heresia e a subversão em graus superlativos”; por sua vez em Quatro-olhos tem-se um autor testemunha da própria insanidade, que constrói ficção literária na qual a loucura se instala a pretexto de recuperar “o domínio sobre sua vida” através de “um monólogo racional, imaginando nele a literatura personificada em prostituta estereotípica.”

A loucura decorrente desses livros se manifesta literariamente, muito mais que propriamente como casos patológicos de alucinações de quem “perdeu a cabeça”, mas de quem tem princípios éticos com a própria função literária de não se omitir ante a opressão, o silêncio, a pressão ideológica, o absurdo existencial imposto sob o estigma da perda da razão. É supimpa, posto que consentânea e enriquecedora da visão do leitor, a análise que Eloésio Paulo faz da loucura em obras e autores de referência.

Ambientados parcialmente em instituições manicomiais, Confissões de Ralfo (1975) e Quatro-olhos (1976) tematizam a loucura de modos diferentes e exemplificam duas opções, apud Monique Plaza: “testemunhar a respeito da própria insanidade ou construir uma ficção literária onde a aventura da loucura se instala e se desenrola.” Se Quatro-olhos busca, segundo o ensaísta, a lucidez, incluindo as loucuras própria e alheia num monólogo racional, Confissões de Ralfo projeta na própria narrativa uma aventura metalinguística em que se entrechocam vários estilos discursivos. Eloésio Paulo considera a loucura como anti-ideológica, “em razão de ser essencialmente discordante do consenso social”, mas admite que ambos os romances “se referem de modo transparente ao cenário político-cultural brasileiro durante a fase mais dura da repressão militar.”

Na acepção do ensaísta, não é possível abandonar o conceito de ideologia, mesmo pelo fato “de os impasses do marxismo, complicados pela reivindicação do termo pela Sociologia, terem criado uma excessiva abertura semântica [que] não cancela a existência de um fenômeno que deve apropriadamente ser chamado de ideologia.”

Por isso, argumenta, “a ideologia ganhou no mundo contemporâneo uma centralidade que só pode ser negada por quem adota uma compreensão muito restrita dos fatos, ou muito comprometida com interesses ideologicamente encobertos.” E, no contexto de sua contraditoriedade, “a literatura é uma das muitas práticas por meio das quais a ideologia pode operar”, ainda que no mundo contemporâneo seu alcance diminui na proporção em que “o tráfego de uma incalculável produção simbólica é feito por veículos de comunicação de massa e mais abrangentes e homogêneos estética e ideologicamente.”

Em Confissões de Ralfo e Quatro-olhos os romances têm respectivamente a loucura como “esclarecimento” e “experimento existencial imaginário”, e ambos recusam “a verdade fechada, faz da sátira das ficções que sustentam a grande ideologia do consenso” e oferecem opções de paradigmas para a compreensão de uma época “sob a multiplicidade aparentemente democrática e dialógica da indústria cultural.”

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Márcio Almeida é escritor e crítico literário. Contato: marcioalmeidas@hotmail.com