No final dos anos 1970, José Renato Kehl trabalhava com seu pai em um escritório de design de produtos. Em meio a uma crise existencial, decidiu estudar astrologia na Escola Júpiter, em São Paulo. Desde então sua vida mudou de rumo, tomando uma direção que ele não poderia imaginar. “Comecei a interpretar mapas astrais, pedi demissão e fui praticar Tai Chi Chuen. Quando me dei conta, eu já estava descalço, pisando em um tapete de brasas no templo xintoísta Kannon, em Diadema”, revela Kehl.

Dono de uma narrativa leve e instigante, Kehl lança agora Labirinto (ed. Terceiro Nome), que conduz o leitor através de suas tentativas de compreender os mistérios e dilemas da existência do ser humano, com todas suas contradições e becos sem saída, trabalho em que mescla relatos autobiográficos com outros totalmente fictícios, e que narram a trajetória de vida do autor e sua mudança gradativa de visão do mundo.

Leia trecho a seguir:

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Labirinto 

Por José Renato Kehl *

Eram quatro homens, e só um sabia falar português – o mais velho, que se chamava Aba’wa. Ele estava na casa dos trinta e poucos anos, era magro e alto, com cara de toureiro espanhol. Os outros mais jovens só falavam sua própria língua, todos com cabelos raspados na frente e longos atrás, ao estilo Xavante, todos vestindo agasalhos esportivos Adidas e sandálias havaianas. A mulher de um deles estava fazendo um tratamento de saúde em São Paulo e os outros vieram acompanhar e aproveitar a viagem para comprar algumas coisas na cidade, como facões, machados e outros utensílios. Nós sabíamos que eles tinham pouco dinheiro e Michel pediu a todos na academia que doassem roupas e sapatos para adultos e crianças, que eles levariam para a aldeia. Os quatro foram treinar conosco e Michel colocou uma fita para tocar com músicas indígenas que haviam sido gravadas por uma antropóloga no Xingu, para quebrar o gelo e deixá-los mais a vontade. Os índios adoraram a fita, e o mais velho disse que eles conheciam algumas músicas. Mas de repente eles começaram a gritar e cercaram o gravador.

— É a gente cantando! — Disse Aba’wa entusiasmado. Algumas das músicas tinham sido gravadas na própria tribo deles e eram eles próprios cantando aquelas músicas. Santa coincidência! O treino foi animadíssimo e eles explicaram como é a tradicional luta da Uka-uka que acontece nas aldeias do Xingu na época do festival indígena do Kuarup.

Depois do treino, fizemos uma vaquinha entre os alunos da academia para pagar o jantar dos rapazes xinguanos. Fui encarregado de levá-los a um rodízio do Grupo Sérgio no meu fusquinha a álcool. Três índios atrás e um na frente, do lado do cara-pálida aqui que os conduzia. No caminho para o restaurante os três passageiros do banco de trás começaram a cantar as músicas tribais que haviam escutado na academia em altos brados batucando o ritmo com socos nos encostos dos bancos da frente, me fazendo sentir como se eu estivesse num filme do Glauber Rocha em parceria com Felini. Quando peguei o trânsito da marginal do rio Pinheiros, Aba’wa segurou firme naquela alça que tem no painel do fusca como se a sua vida dependesse disso. Eu tentei acalmá-lo mostrando segurança ao volante e fazendo um comentário trivial:

— Às vezes eu acho que tem carro demais em São Paulo. Para que tanto carro, não é mesmo?

— Para o homem branco se matar — respondeu o índio, sinceramente preocupado.

Aba’wa só soltou da tal alça quando chegamos ao restaurante, sem nenhum incidente. Depois de nos sentarmos, ele se acalmou, olhou em volta e me disse:

— Aqui é lugar de gente pobre.

— Não, mais ou menos. Gente pobre nem come em restaurante.

— Sei.

— Mas por que você diz isso?

— Olha ali, naquela mesa tem até um índio. Índio não tem dinheiro. — E ele apontou para um sujeito de pele morena com o cabelo preto comprido e liso, caindo sobre os ombros.

— Mas aquele homem não é índio, ele tem bigode.

— Ele é guarani. Eles têm bigode.

Ele então traduziu para os outros índios o que havia me dito e todos começaram a rir e apontar para o sujeito na outra mesa. Era uma piada que só o cara-pálida não sacou, pois todos sabiam que aquele não era um índio realmente, mas também sabiam que uma pizzaria rodízio não era um lugar de gente rica. Então um garçom se aproximou da mesa para anotar os pedidos de bebidas. Eu fui dizendo que ali eles poderiam comer, além de pizza (que nenhum deles sabia o que era), todos os tipos de carne.

— Tem carne de paca? — Perguntou Aba’wa.

— Não — disse o garçom espantado olhando para o único cara-pálida da mesa, como se eu pudesse explicar para ele o que aqueles índios estavam fazendo na pizzaria.

— Eles são do Xingu — expliquei.

Então os outros rapazes começaram a conversar em sua própria língua e pediram para Aba’wa traduzir o pedido para o garçom.

— Tem carne de macaco?

Não tinha também.

— E de anta?

Não tinha. Então ele me olhou com cara de espanto e disse:

— Você não falou que aqui tinha todo tipo de carne?

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Labirinto, de José Roberto Kehl

Editora Terceiro Nome, 216 págs., R$ 40,00

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José Renato Kehl, arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e mestre pela mesma instituição, é professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da FAAP, o qual coordenou de 2005 a 2012

 

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