Por Raimundo Neto *

Ao dirigir-me à Ocupação Hilda Hilst, no Itaú Cultural, levei comigo todas as impressões antigas de leituras das obras da escritora que apreciei na minha adolescência. Anos atrás, comecei a ver mais Hilda na TV, em programas (que eram poucos) literários; catei Hilda em revistas literárias. Depois, quando a internet dominou minha vontade, comecei a pesquisar entrevistas com a Hilda de uma forma vertiginosa. E eu não conseguia enxergar apenas uma mulher comum que escrevia para transgredir; Hilda era uma aparição que combinava com perfeição e encaixe em todas aquelas impressões de tons e efeitos saudosos dos vídeos e áudios que eu encontrava, e apesar disso Hilda ainda carregava o futuro em um tempo só dela.

Entrei no Espaço Itaú Culturale, São Paulo, onde acontece a Ocupação Hilda Hilst, e fui recebido por uma repetição da voz de Hilda e um cão silencioso. A voz dizia a mesma profundidade sobre poesia; o cão mostrava-se amigo e calmo, repetidas vezes. No cômodo seguinte, a voz de Hilda entre passarinhos, e o entendimento da complexidade de uma vida que reverbera. Cada palavra velha numa vida que resiste bravamente. As repetições querem dizer o que Hilda acreditava: no compromisso com o fazer: fazer de novo: rescrever: trabalhar a obra: de novo, de novo e de novo.

Hilda, pelo que dizem, tinha uma atitude aberta em relação ao outro. Levei a expressão para a literaridade da coisa: Se ela queria ser lida, e achava que todos os seus sentidos eram mesmo compreensíveis, e ainda preferiu construir uma casa onde suas palavras pudessem ser trabalhadas todos os dias, faz muito sentido que Hilda quisesse pessoas (muitas) transitando entre suas palavras, em todos os cômodos de sua casa-trabalho, faz sentido que Hilda fizesse questão de ser ocupada.

Pelo nada que sei de Hilda, ‘A Casa do Sol’, onde morou, fora construída após ela resolver mudar o seu estilo de vida, onde poderia concentrar-se em sua obra. O sol de Hilda cabia dentro de quatro paredes. Há muito deixou de ser ruína. Deve ter passado anos entregue à presença emblemática, após sua morte, e ao verde do mundo que ali cabia. Depois, ressuscitou; as palavras de Hilda, que não morre, não morrem, resgataram o sol que dormia. Lá deve ter átomos de Hilda soltos no ar.

A Ocupação Hilda Hilst não tenta reproduzir a casa, mas abre espaços que aconchegam. Acredito na mística da palavra, no poder que o sentido dentro de cada palavra dita e, principalmente, sentida traz em si. Percorrer o espaço pequeno da Ocupação é aproximar-se dos rabiscos de Hilda – do risca e corta, rabisca e desenha, escreve, reescreve, traça uma linha, uma seta, datilografa, depois risca a tinta da máquina; é uma forma de entender todos aqueles ditos de Hilda nos vídeos que visualizei dezenas de vezes e dos livros que apreciei em minha adolescência imatura.

A ocupação é um pedaço da casa de Hilda. O resgaste do que não morre. É onde as perguntas se abrem em perguntas, flor dentro de outra flor; o desejo abrindo-se no desejo seguinte; um enigma sem fim. E ali enxerga-se o infinito. Placas de madeira sobrepostas abrem-se em segredos, como as gavetas espalhadas pelo espaço. Segredo nenhum sobrevive escondido por muito tempo. Nem tudo que vive escondido é segredo.

Há um vídeo guardado em um canto, onde Hilda repete sua intenção de mundo: Viver não é simples. E as imagens trazem Hilda, as ideias em fumaça, tragadas, sopradas, o mar nos pulmões; e o verde; depois vem o fogo de Hilda, o que ela carregava na entranha das palavras, desde os rabiscos.

Qualquer curioso, ou um estudioso de Hilda, pode sentar e contemplar palavras impressas, mas as palavras velhas, algumas incompreensíveis, de tempos que nunca acabaram, são as mais interessantes: Elas são Hilda cansada e nunca entregue, sem derrotas, sentada há horas, a decidir o sentido preciso, executando o gozo do significado; ouvi o gemido de uma palavra maior que tudo, que domina o mundo de Hilda e a liberta. Eu vi Hilda torna-se fantasma antes da hora, antes do fim.

A voz da poeta, da romancista, da contista, dramaturga, todas as vozes de Hilda impregnadas de fumaça, soprando sentindo; o ranço de muitas dúvidas em palavras tão firmes e livres.

Hilda dizia “Eu acredito em tudo”, e assim ela acreditava em todos os deuses e na remissão nos pecados, em fantasmas, disco voadores, amores que nunca acabam, acreditava que a mulher e o desejo são maiores que tudo também. Hilda não se deixava abater por reflexos: entregava-se à certeza dos jogos de luz e sombra.

Hilda está presente em toda a sua obra. Hilda é presença e palavra.

A Ocupação é o canto escondido que deixa o fantasma das vontades de Hilda explicar ao que veio, é o aconchego de uma casa de clima amigável e inspirador.

Antes de deixar a casa de Hilda, olhei para trás, e só consegui enxergar o futuro.

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Raimundo Neto é escritor; colabora com a SPR

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